Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

Entre a Vida e a Morte: Uma Surpreendente História de Amor
Era quase fim da década de 1980. Eu era um médico de quarenta e poucos anos e trabalhava como plantonista no CTI de um hospital.
Era solteiro por convicção, não acreditava em amor verdadeiro e duradouro, nunca havia me apaixonado. Meus relacionamentos eram descartáveis e nenhuma mulher esteve em minha vida por mais de um ano.
Numa noite eu cheguei para o meu plantão. Olhei o que havia mudado, quem entrou, quem saiu, alterações que ocorreram.
Em um dos leitos havia uma jovem mulher, quase trinta anos, que dera entrada naquele dia. Ela passara por uma gravidez de risco e naquele dia entrou em trabalho de parto. O parto se complicou e ela teve que passar por uma cirurgia de emergência. No fim entrou em coma e estava ali. Não havia nenhuma garantia que sobreviveria, pelo contrário, seu estado era considerado grave e sem muitas perspectivas de boa evolução.
Naquela época os diagnósticos através de exames não eram tão precisos como hoje em dia. Na realidade, ainda não tinham um diagnóstico preciso do estado dela. Estava respirando por aparelhos e não tinha nenhuma reação. Não sabíamos se ela sofrera alguma lesão cerebral ou outra lesão por hipóxia. E no momento não havia qualquer condição de realizar nenhum exame. Ela estava ali com as funções vitais preservadas e estávamos fazendo o que era possível para mantê-la viva.
Em um CTI o trabalho é sempre tenso e corrido.
Bem mais tarde,  eu fui até o leito dela e fiz os exames necessários. A enfermeira que me acompanhava disse:
-Disseram que o marido dela está desesperado. Chora sem parar. Não sai  do hospital nem um minuto.
-Que amor, hein?
-A mãe dele disse que são muito apaixonados mesmo. Que há um amor muito intenso e forte entre eles. Fiquei com muita pena. Ela é tão jovem e linda, não é?
-Parece ser linda, sim. Será que são casados há pouco tempo?
-A mãe dele disse que este bebê que nasceu é o quarto filho deles.
-Quatro. Que disposição! Sabe se o bebê está bem?
-Disseram que sim, apesar de um pouco prematuro está muito bem.
-Coitado. Se ela morre vai ficar sem mãe tão cedo.
-Todos aqui estão comovidos com o sofrimento do marido dela e estamos todos na torcida pra ela se recuperar.
-Eu também torço por isto e por todos os pacientes que entram aqui. Torço pra ela se salvar pelo bebê também. Ele não merece ficar órfão.
O resto do plantão passou sem intercorrências para ela. Mas foi um plantão pesado, tenso.
Saí do plantão pensando naquela mulher e em sua história. Na minha pouca fé pedia a Deus que ela se recuperasse.
Meu próximo plantão seria durante o dia. Cheguei para o trabalho ansioso por saber noticias da mulher e receoso de que elas não fossem boas.
Entrei e os funcionários conversavam sobre ela. Fiquei escutando. Diziam que no dia anterior durante a visita da tarde o marido ficou o tempo todo falando com ela e fazendo carinho em seu rosto, cabelos e braços. Surpreendentemente e não se sabe se por coincidência ou não ela teve uma significativa melhora em suas principais  funções. Eu, como médico racional e que não levava muita fé em fenômenos inconscientes e psíquicos, fiquei na minha, só observando.
O plantão estava surpreendentemente calmo. Tudo sob controle.
Chegou o horário de visita e o marido dela chegou. Eu o observei. Era jovem também, mais ou menos da idade dela. Estava triste e abatido. Parecia cansado.
Ele se aproximou do leito. Pegou sua mão. Eu, de maneira pouco ética, fiquei por perto. Queria saber o que ele falava que poderia surtir um efeito tão milagroso.
Ele começou a falar:
-Meu amor, sou eu. Estou aqui com você. Estou muito feliz pois fiquei sabendo que você atendeu meu pedido e está lutando bravamente por sua vida. Eu sei que você vai voltar pra mim e para nossos filhos. O nosso pequenininho é lindo e forte. Está muito bem, eu já lhe disse, né? Já lhe disse também que lhe amo muito e que não sei viver sem você. Eu e nossos filhos precisamos muito de você. Lute mais, lute com todas as suas forças pela sua vida. Você me promete lutar? Eu conto com sua força. Deus está conosco. Eu não posso ficar o tempo todo com você. Mas eu estou ali do lado de fora lhe esperando. Sei que você não vai me deixar, não vai me decepcionar.
Ele continuava falando e durante o tempo todo segurava sua mão e acariciava seu rosto, cabelos, braços. Eu confesso que estava envergonhado de estar ali ouvindo aquela conversa tão intima mas também estava emocionado com tanto zelo, carinho e amor. Nunca vira na minha vida nada igual. Nunca sentira nada nem parecido.
Terminou a visita e ele saiu a contragosto, queria estar ali.
Na visita da tarde foi o mesmo ritual. E as funções dela melhoravam de forma inesperada e acelerada.
Todos que trabalhavam ali estavam tão emocionados e surpreendidos que estávamos torcendo e orando cada um em sua fé para que ela se recuperasse.
No meu próximo plantão, à noite, eu encontrei aquela mulher bem melhor. Disseram que durante as visitas do dia ela apertou a mão dele e abriu os olhos por um ou dois instantes. E ele se emocionou e conversava com ela o tempo todo. Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo. Se ela continuasse naquela recuperação muito em breve já estaria respirando sozinha e voltando aos poucos ao estado de consciência.
No meu próximo plantão durante o dia, durante a visita ela abriu os olhos e tentou falar alguma coisa. Acho que ele a entendia sem palavras e perguntou se ela estava querendo saber do bebê e que se fosse isto ela piscasse. E ela piscou. Quando ele disse que o bebê estava bem ela esboçou um sorriso fraco e leve.
Aquela rotina das visitas dele continuou. O fato é que dez dias depois dela ter sido internada ali, ocorreu a alta e ela foi para o quarto.
Todos se emocionaram. Ela estava abatida, fragilizada, debilitada, lutando ainda pra se recuperar, mas sem sequelas aparentes. Muitos exames ainda seriam feitos mas,  modo geral,  ela estava pronta para se recuperar e voltar a uma vida normal. O marido estava exultante. Nunca vi alguém assim tão esfuziante e feliz. Eu olhava pra minha vida e sentia uma ponta de inveja por ver que é possível amar e se entregar tanto assim.
Ela ainda ficou muitos dias no hospital e eu sempre procurava saber noticias. Estava se recuperando bem e o marido ali do lado dela. Noite e dia, durante todo o tempo.
No dia da alta dela foi uma festa no hospital. Todos aplaudiam, todos cantavam para eles.
Foram embora, foram viver aquele amor tão grande que foi capaz de mudar o curso das coisas.
Aquela mulher saiu da morte para a vida por amor. O amor que sentia e o amor que recebia.
Nunca ficaria provado que foi o amor que havia entre eles que a salvou. Talvez seria o curso natural das coisas, talvez não fosse aquela a hora dela morrer. Talvez mesmo sem aquelas visitas ela teria se recuperado. Como saber? O fato é que pela medicina aquela recuperação tão breve e sem sequelas não podia ser explicada. Aquela história foi contada por muitos anos no hospital. A história da mulher que se salvou por amor.
Muitos anos depois eu os vi em um restaurante, com os filhos já adolescentes ou jovens, felizes e apaixonados. Assim que os vi eu os reconheci. Jamais poderia esquecê-los.
Eu nunca os esqueci. Cada vez que eu me sentia só ou insatisfeito,  infeliz ou incapaz de amar, eu me lembrava daquele casal que venceu a morte pela força do amor.
Mas aquela história não foi capaz de mudar o curso da minha história. Nunca vivi um amor de verdade. Nunca me casei. Nunca me senti feliz de verdade ao lado de uma mulher. Vivo sozinho.
Cada vez que chegava para um plantão eu me lembrava daquela mulher. Sempre esperei que outro caso igual acontecesse. Sempre esperei que um outro milagre do amor salvasse uma vida. Mas nunca mais vi nada igual.
De todas as histórias que acompanhei durante a minha vida profissional, aquela foi a que mais me marcou, foi a única que eu jamais vou esquecer. E sempre que me lembro deles vem aquela pontinha de inveja, aquela vontade de ter experimentado um amor assim. Mas isto não era pra mim…
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 04/09/2021
Alterado em 11/11/2024
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