Espiritualidade e Loucura
-Boa tarde!
-Boa tarde! Você me parece um tanto eufórica hoje. -E estou. Vim aqui hoje para dar um basta. Pra me libertar. -Dar um basta? Libertar? De quê, exatamente? -De você, dos medicamentos, dos rótulos. Eu sorri num misto de ironia e incredulidade. -Você não pode fazer isto. -E por que não? -Você está em tratamento. Eu sou sua médica. -Por muito tempo me abrigaram aos medicamentos. Agora eu decidi que não quero mais isto. -A médica sou eu. Quem decide isto sou eu. -A vida é minha. Hoje eu já sou uma mulher e sobre minha vida eu decido. -Sabia que eu sou responsável por seu tratamento e que se eu me omitir e acontecer alguma coisa com você eu posso até ter meu registro cassado além de ser responsabilizada judicialmente? -Balela. E se eu simplesmente abandonasse o tratamento? Você poderia me obrigar a comparecer às consultas? -Obrigar, não. Mas eu iria avisar sua família. -Pois faça isto. Mas me diga como me libertar destas drogas que vocês me impõem. -Eu não posso fazer isto pois sua atitude só demonstra que você mais que nunca pecisa dos medicamentos. Agora era ela ria debochadamente. -Hoje eu não saio daqui enquanto eu não disser tudo o que eu não lhe disse até hoje Eu era a psiquiatra dela há pouco mais de seis meses. Durante este tempo ela se recusou a falar comigo sobre alguns temas que eu julgava importantes. Ela já tinha passado por outros psiquiatras que foram muito apressados em diagnosticá-la como como esquizofrênica. Como ela não melhorava com a medicação, sua família sempre mudava de psiquiatra. Ela estava nesta época com vinte e dois anos. Desde os sete anos vinha sendo tratada com vários medicamentos que nunca surtiram efeito. Com o olhar distante ela começou a falar: “Nasci em uma família católica mas que acreditava em benzedeiras e por vezes se consultava com espíritas. Lembranças se misturam. Lembranças de uma infância solitária. Uma solidão dura e amarga, aquela que acontece na presença de outras pessoas. Como se eu fosse invisível. Como se as outras pessoas fossem só uma miragem. Era como se eu não pertencesse àquela família. Eu estava sempre solitária pelos cantos, não me sentia a vontade. Eu era luz e não gostava de sombras. Eu era mensageira de alegrias e não gostava de tristeza. Aquela casa e aquela família eram horrivelmente sombrias. Desde cedo eles me tolheram. Minha alegria incomodava e finalmente aos quatro anos eu levei uma surra de minha mãe que era desequilibrada emocionalmente. Então sentada ali no escuro sozinha eu decidi que não ia mais incomodar ninguém. Desde este dia eu comecei a ver alguns vultos e meus pais algumas vezes me pegaram conversando com eles mas diziam que eu estava falando sozinha. Estes vultos eram bons e sempre me falavam coisas boas. Falavam sobre mim e sobre meu futuro. Muitas vezes diziam que um dia eu receberia a minha sublime missão e que eu precisava estar preparada para cumprí-la. Vinham me consolar quando eu estava triste ou me fazer companhia quando eu me sentia extremamente solitária e sem lugar naquela família. Naquela época era comum as pessoas contarem casos de assombração, fantasmas e outros fenômenos sobrenaturais. Eu ouvia estes casos e pensava que o que eu via e ouvia era fantasmas ou assombrações. Por isto eu me tornei medrosa. Não entendia o que estava acontecendo. O escuro da noite me deixava apavorada. O medo era incontrolável e eu chamava meus pais. Estes fenômenos continuaram acontecendo e eu fui me tornando arredia. Ninguém acreditava que realmente eu via vultos e ouvia eles falando comigo. Passei a não contar pra ninguém pois eles achavam que eu era louca. Aos sete anos comecei meus estudos e me saía bem na escola. Logo aprendi a ler e minhas notas eram excelentes. Mas como eu comecei a ficar muito arredia, estranha e medrosa e vez por outra me pegavam conversando com os vultos que eu via, resolveram me levar a um psiquiatra. Ele iniciou o tratamento e me medicou. Mas nada mudou. Eu me tornava introspectiva e solitária. Tinha poucos amigos e não conseguia interagir na escola. No entanto era inteligente e me saia sempre bem nos estudos. Eu procurava esconder que via vultos e que conversava com eles para que não me levassem ao médico e ele me receitasse aqueles medicamentos que não gostava de tomar. Aos quinze anos eu tinha crises de ansiedade e de medo. Meus pais resolveram então me levar a tratamento espírita. O médium que me atendeu disse a minha mãe que eu era uma médium muito forte e que isto me atrapalhava e gerava todos os sintomas que eu tinha e estes vultos que eu via. E que eu precisava desenvolver a minha mediunidade para que eu fizesse bom uso dela. Aconselhou a me levar a um Centro Espírita para que eu iniciasse meus estudos e me preparasse para ajudar as pessoas. Mas eu me recusei a fazer isto e eles também não acharam adequado. Eu não acreditava nesta história de mediunidade e orava a Deus pedindo que me livrasse destes vultos. Mas quanto mais eu orava e pedia mais os vultos apareciam e me apavoravam. Quando aos dezoito anos comecei a trabalhar, me senti melhor. Interagia com meus colegas de trabalho e fiz amigos. Por um curto período de tempo eu fiquei sem ver aqueles vultos e ouvir aquelas vozes. Mas poucos meses depois, uma noite eu acordei de um sonho em que me ordenaram: “Levanta, pega papel e lápis e escreve o que vamos ditar. Eu fiquei quietinha, paralisada de medo. Tentei dormir mas a voz repetiu e repetiu a ordem. Então para ficar livre daquela voz eu levantei e escrevi o que me mandaram. No final me ordenaram entregar para o destinatário da mensagem. Na manhã seguinte eu rasguei o papel em pedacinhos e joguei no lixo. Na noite seguinte a mesma voz me chamou e mandou que eu escrevesse novamente a mensagem e que a entregasse. Eu escrevi e no dia seguinte fui até o endereço e coloquei debaixo da porta e saí rapidamente do local. Não contei pra ninguém pra que não achassem que eu era louca. Quanto mais se tornava evidente que os espíritos existiam e vinham falar comigo mais eu negava este fato. Agarrava-me a Deus e ao Espírito Santo pedindo para que eu só ouvisse a voz divina e nenhuma mais. Um tempo depois eu estava andando na rua e vi uma senhora passando mal. Algumas pessoas tentavam ajudar. Pediram pra chamar uma ambulância. Então uma voz me disse: `vai até lá e ajuda, é chegada a sua hora.` Apavorada eu tentei sair correndo, mas estava paralisada. Então aquela voz disse: `vai lá coloca a mão na cabeça dela e pergunta baixinho se ela tem fé suficiente para ser curada.` Eu estava apavorada. Como uma pessoa muito tímida eu não tinha coragem para chegar e dizer o que me mandavam. E a voz repetia: `Vai lá agora`. Eu fui andando e cheguei até lá. Fiz o que mandaram. A mulher respondeu que sim que tinha fé e eu fiz uma oração baixinho que nem sei de onde veio. A mulher foi se recuperando. Todos ficaram espantados. Ninguém entendia e eu disse só falei para ela ficar calma, mais nada. A mulher olhava pra mim e, mesmo sabendo que não era verdade, confirmou o que eu disse. Saí dali sem saber o que pensar. O que queria dizer: `é chegada a sua hora`? Comecei a pedir em orações fervorosas a Deus que me fosse revelada a verdade, que se aquilo que me acontecia não fosse de Deus que fosse retirado de mim. Dias depois uma voz me disse: `O julgador pergunta: Van Gogh errava quando pintava?` Eu fiquei calada e ele disse: `Responda.` Então eu disse: Não pois ele sabia o que fazia pois amava a pintura e tinha tudo dentro de si. O julgador responde: `Ame sua missão, você tem tudo dentro de si. Você sabe a resposta de tudo. Tudo principia em você, O medo trava. Desfaça-se do medo. Do medo de viver, do medo de mudar. Arrisque, voe alto. Faça o que nunca fez, ande onde nunca andou Você nasceu para brilhar. Você nasceu para fazer o bem e levar luz às pessoas. Você não pode fugir disto ou viverá infeliz por toda a vida. Ouse, busque em você. Busque, busque, busque. Liberte-se, liberte-se, liberte-se.` No dia seguinte eu pensei que tinha sonhado e não liguei para aquilo nem senti medo como sempre sentia. Mas algo se moveu em mim. Desde então venho meditando e pensando sobre todas estas coisas. Recentemente procurei um espírita e tivemos uma conversa muito séria. Eu não vou mais fugir. Eu não vou mais fingir que tudo isto não existe. Eu não sou louca, eu não preciso de medicamentos. Todos estes medicamentos que tomei desde os meus sete anos só fizeram me prejudicar. Eu vou aceitar o que tenho que fazer. Se é preciso, se é o meu caminho, eu não vou fugir. Eu nunca fiz mal a ninguém, só o bem. E vou continuar fazendo.” Eu não acreditava em tudo aquilo que estava ouvindo. Para uma médica tudo aquilo era muito louco. Mas de uma forma inexplicável uma intuição me disse para deixar o rio seguir seu curso. Ela se foi deixando para trás tudo que lhe foi imposto e anos de tratamento ineficaz. Discretamente eu sempre procurei noticias dela. De forma inexplicável ela estava cada vez melhor. Seguindo a sua espiritualidade, seguindo seus guias ou sei lá o que era. Livre para crescer espiritualmente. Tudo em sua vida se transformou e ela estava feliz, exuberante, livre, solta. Soube que muitas vezes ela levava alento a doentes ou mensagens às pessoas que precisavam de consolo. E ela sempre deixava muito claro que nada podia em si, que era apenas o instrumento do Ser Superior, do Deus Eterno. Desde este dia eu sempre tenho muito cuidado em um diagnóstico. Não quero correr o risco de fazer a alguém o mal fizeram a ela.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 06/09/2021
Alterado em 24/04/2022 Copyright © 2021. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |