Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

Abandono
Eu me casei com aquela mulher maravilhosa. Era linda, inteligente, bem sucedida, bem resolvida emocionalmente e sempre tinha uma palavra ou um conselho para quem precisasse.
Eu vinha de um relacionamento com uma amiga de infância que acabou em uma grande frustração e eu acabei por magoá-la muito.
Quando conheci aquela mulher eu me encantei imediatamente. Ela também se encantou comigo. Já éramos adultos, ambos com mais de trinta anos.
Ela era executiva em uma indústria química e eu estava presidindo a empresa de minha família. Trabalhávamos muito mas sempre encontrávamos um tempo para estarmos juntos. Diferente do que acontecia com o meu namoro anterior.
Namoramos pouco mais de um ano e decidimos nos casar.
Dois anos depois éramos pais de um lindo garoto e nossa vida parecia um conto de fadas. Eu me sentia feliz e realizado.
Dois anos depois nasceu a nossa princesa e a vida não poderia estar melhor.
Conseguíamos contornar nossa falta de tempo e até parecia que nosso tempo se multiplicava para darmos atenção aos nossos filhos e vivermos o nosso amor.
A vida ia seguindo seu curso e eu estava cada vez mais feliz e encantado com minha mulher. Parecia que nossa família era a mais feliz do universo.
Talvez até por isto aquele dia foi tão triste para mim.
Numa noite ela chegou e disse que precisava conversar comigo.
Sem suspeitar de nada, sentamos na sala de estar, depois de colocar nossos filhos de oito e seis anos na cama.
Ela começou:
-Eu tenho um comunicado a lhe fazer.
-Comunicado? Como assim? A gente sempre resolve tudo em nossa vida de comum acordo, depois de conversar e chegar a uma solução.
-Mas desta vez vai ser diferente.
Com um pressentimento ruim e um aperto no coração eu disse:
-Seja mais clara.
-Eu recebi uma proposta de trabalho na França.
-Como assim? Você está tão bem aqui e nós temos um casamento tão estável. Temos nossos filhos. Além do mais eu não posso sair do país.
-A empresa em que eu trabalho quer que eu vá trabalhar na França. E eu decidi que vou.
-Você decidiu? E eu? Onde fico?
-Aqui, presidindo a sua empresa.
-E nós?
-Sabe, eu cheguei a conclusão que não nasci pra ser casada, pra levar esta vida medíocre e sem sentido.
-Medíocre e sem sentido? Não estou acreditando no que estou ouvindo. Pensei que fosse feliz ao meu lado, que me amasse.
-Eu te amei muito, te amo ainda. Mas não consigo viver esta vidinha de esposa e mãe. Eu nasci pra ser uma grande profissional. Esta vida está me deixando entediada.
-Não posso acreditar. E o que você pretende fazer com nossos filhos? A mim você pode deixar, mas e nossos filhos? Vai fingir que eles não existem?
-Eu vou embora sozinha. Tenho certeza que nossos filhos vão ficar melhor com você. Eu não nasci pra ser mãe, pra ficar me ocupando com criação e educação de filhos. Não nasci também pra ser casada, pra ficar dando atenção a um marido.
-Existe outro?
-Não. Não quero mais ninguém em  minha vida. Vou me dedicar ao meu trabalho e às coisas que gosto.
-Não consigo acreditar no que estou ouvindo. Uma mãe abandonando os filhos sem nenhum sentimento, sem nenhuma culpa.
-Deixemos de sentimentalismos. Por que uma mãe tem que ficar agarrada aos filhos? Eu errei ao ter filhos, errei ao me casar. Tenho que ficar presa a isto o resto de minha vida? Tenho que viver a vida toda infeliz? Não penso assim e não vou ficar apegada a convenções arcaicas e ultrapassadas.
-Família, amor, amor aos filhos são convenções arcaicas e ultrapassadas? Você carregou nossos filhos em sua barriga, você gerou nossos filhos. Como pode taxá-los agora de simples sentimentalismo? Como posso ter me enganado tanto com você? Não lhe reconheço. Você fingiu o tempo todo? Estou estupefato.
-Não fingi. Por um tempo eu me senti feliz mesmo. Mas o meu lado prático falou mais alto. Não tente me culpar por isto ou vir com chantagem emocional. Não vou me sentir culpada. Só tive filhos pra lhe agradar, mas isto não é pra mim. Sinto muito.
-Isto? Você chama seus filhos de  “isto”? Você não é um ser humano, é um robô.
-Pense como você quiser. Já estou com tudo pronto, tudo acertado. Daqui uma semana eu parto para a França. Vou ficar em um hotel até o dia de minha partida. Amanhã eu vou embora.
-Você estava fazendo tudo pelas minhas costas? Que espécie de mulher é você, capaz de uma coisa desta? Até ontem você estava em meus braços. Como você finge bem, não é?
-Não finjo. Sexo não tem nada a ver com sentimento.
-É verdade mesmo? Não consigo acreditar. Sabe o que está fazendo comigo? Eu amo você. Não se importa como eu vou ficar? Não se importa com seus filhos? Como eles vão ficar, como vão sentir sua falta?
-Você vai superar, vai esquecer. Você sempre foi frio e distante de tudo. Vai superar rápido. E as crianças são pequenas ainda e vão se acostumar com minha ausência. Ligo pra elas pra conversar.
-Ah! Você liga pra elas pra conversar? Quanta consideração!
-Por favor, peça a seus advogados que cuidem da separação. Quero assinar o pedido antes de ir.
-Eu amo você. Posso ter sido frio algum dia, mas com você eu aprendi o sentido do amor. Eu estou me sentindo destruído com tudo isto que você está falando e fazendo.
-Fomos felizes. Mas agora acabou. E você logo esquece.
-É só o que você tem a me dizer? Simples assim?
-Simples assim. Não adianta falar mais nada. Não tem mais volta. Pedi pra preparar pra mim o quarto de hóspedes. Amanhã vou arrumar minhas coisas e quando você chegar não estarei mais aqui.
Ela simplesmente se levantou e saiu da sala.
Eu estava sem chão. Não estava ainda entendendo muito bem o que estava acontecendo.
Nos próximos dias eu tentei falar com ela. Ela me recebeu no dia seguinte de maneira fria, como se não tivéssemos dividido a mesma cama e a vida por dez anos. Depois disto não me recebeu mais. Disse que só falaria com os advogados e que não queria nada de mim. Apenas o divórcio.
Nos próximos dias tive a triste tarefa de explicar para meus filhos que a mãe deles ia fazer uma longa viagem e que eles ficariam sem vê-la. E que a partir daquele dia ela não iria mais morar conosco. Muito espertos e acostumados a ver outros coleguinhas deles que não moravam com pai e mãe, eles logo entenderam que estávamos nos separando.
Na véspera de ir embora ela pediu, através do advogado, para se despedir dos filhos, com a condição que nem eu nem meus pais estivessem presentes. Pelo bem dos meus filhos eu concordei.
Ela se foi e no princípio falava com eles pelo menos uma vez por semana. Aos poucos foi deixando de ligar. Meses depois eles deixaram de perguntar por ela. Se acostumaram com a covarde ausência dela em suas vidas.
Seus avós maternos, que já moravam longe, também os abandonaram.
Mas eles receberam de meus pais e de mim tanto amor, carinho e atenção que tenho certeza que eles se sentiam felizes e não sentiam falta dela.
Aos poucos eu fui me recuperando da tristeza que aquela atitude dela me causou e por fim aprendi a viver com aquela separação que tanta dor me causou na alma.
Nunca mais me casei. Vivi para os meus filhos. Namorei algumas vezes mas sem nunca assumir nenhum compromisso sério. Em primeiro lugar sempre estavam eles.
Fui pai e mãe de meus filhos. Sempre fui eu que estive ao lado deles quando ainda dependiam de cuidados, quando as dúvidas e medos de adolescentes surgiram, quando as decepções da vida os atingiram, quando as vitórias os deixaram exultantes, quando amaram, quando casaram, quando meus netos nasceram.
Juntamente com meus pais eu os eduquei. Demos a eles a melhor formação moral e de caráter e eles se tornaram pessoas de bem e bem sucedidos. Não demonstravam traumas e não pareciam sentir falta da mãe.
Quando eles tiveram idade e maturidade suficiente para entender a atitude da mãe, eu conversei com eles, mas sem nunca jogá-los contra ela. Eles já tinham perdido o suficiente, não precisavam perder o respeito pela mãe  também.
Amei incondicionalmente meus filhos e tive deles amor dobrado. Eu fui feliz.
Nunca mais a vi. Ela nunca mais viu seus filhos, como se eles não existissem.
Nunca aceitei sua atitude, mas nunca a julguei. De alguma forma ela deve ter tido seus motivos para esta atitude extremada e pouco convencional.
Hoje, olho para trás e vejo que tudo valeu a pena. Sempre tive o amor, o respeito, a companhia, o carinho e a gratidão de meus filhos por tudo que fiz por eles. Ela perdeu a oportunidade de viver a vida ao lado de criaturas tão especiais.
Ela se foi, me abandonou. No entanto deixou comigo dois tesouros. Sou grato a ela por ter emprestado seu corpo pra gerar e por ter trazido ao mundo os meus filhos, embora ela não tenha tido capacidade de ser uma mãe.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 19/10/2021
Alterado em 24/07/2022
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