Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

O Casarão Abandonado
Eu passava por ali e olhava para aquele casarão. Estava morando naquela cidade há quase três anos. Algo nele sempre atraia meu olhar. De maneira irresistível muitas vezes eu parava e olhava demoradamente para aquela fachada desgastada pelo tempo. As informações sobre ele eram desencontradas. A quem ele pertenceu? O que aconteceu para que uma casa tão linda ficasse assim por tanto tempo desabitada. Não se chegava a um consenso e as pessoas evitavam o assunto e também o casarão. Diziam  apenas que este mistério já resistia há algumas gerações.
Era uma construção muito antiga que resistiu às intempéries e ao tempo.
Eu tentava pesquisar e investigar aquele mistério. Durante muito tempo minha busca foi em vão.
De tão atraída e até certo ponto, obcecada, comecei a sonhar com aquela casa. Era sempre um sonho tenso em que eu me perdia dentro da casa e não conseguia encontrar a saída.
Cada vez mais aquela casa  me intrigava. Cada vez eu chegava mais perto.
Eu não era uma pessoa muito corajosa e não me aventurava com facilidade. Ainda mais sendo uma mulher, ficava temerosa em chegar muito perto. Fiquei por algum tempo só admirando o casarão do lado de fora do portão.
As grades e o portão eram grossos e altos. Pelo requinte da fachada, podia-se perceber que os donos dali eram pessoas abastadas e, provavelmente, poderosas.
Após mais um sonho agitado e tenso com aquela casa, ousei entrar no jardim. Estava sozinha. Mas como não ia entrar na casa, pensei que estaria segura.
Andei por todo o jardim e ali reinava um silêncio assustador. O jardim e quintal eram muito grandes. Muitas árvores e o abandono era total. Nem um canto de pássaro se ouvia. No fundo do jardim havia uma construção parecendo um túmulo. Cheguei até lá e ali se lia:  Ana Emília Almeida Araújo com as datas de nascimento, 10 de junho de 1852  e morte 15 de outubro de  1880, José Artur Mendonça Araújo com data de nascimento 26 de fevereiro de 1834 e morte 09 de julho de 1901
Jaziam ali uma jovem mulher e um homem.  Quem seriam?
Quando eu me virei, estremeci de susto. Minhas pernas tremiam e eu não conseguia dar um passo. Uma jovem mulher me olhava e perguntou:
-Está procurando alguma coisa?
-Não. Este casarão sempre me atrai. O portão estava aberto e entrei apenas para olhar.
-Quer entrar na casa?
-Não. Não quero incomodar. Nunca vi ninguém por aqui. Você mora nesta casa.
-Estou sempre aqui.
-Nunca lhe vi pela cidade.
-Eu já lhe vi várias vezes no portão observando o casarão.
-Você é a dona desta propriedade?
-Não. Nunca fui dona de nada. Nem da minha própria vida.
-Mas se você vive aqui deve conhecer os proprietários.
-Não vê que a casa está abandonada?
-Então você é moradora de rua e se abriga aqui?
-Você acha que tenho cara de moradora de rua?
-Não. Você se veste muito bem, mas com roupas estilo antigo. É uma excentricidade sua?
-Não. Quer conhecer a casa?
Intuitivamente eu a segui, sem medir as consequências.
-Você conhece a história desta casa? Sabe quem viveu aqui e quando?
-Sim. Conheço toda a história desta casa. Está desabitada há muitos e muitos anos.
Entramos e ela me mostrou algumas partes da casa. Depois sentamos na sala, que era o único cômodo que se via que estava limpo.
-Gostaria que me contasse a história.
-Sim. Posso contar com uma condição.
-E qual é a condição?
-Que você conte esta história, que faça com que ela fique conhecida.
-Posso tentar. Não sei se terei muita audiência.
-Não importa. Tenho certeza que ela chegará ao lugar certo.
-Como ao lugar certo?
Sem responder minha pergunta ela começou a falar.
-Aqui morou um casal rico. Os casamentos arranjados pelos pais eram muito comuns. A mulher que residia nesta casa não fugiu a esta regra. Era uma mulher muito bonita e o senhor, dezoito anos mais velho, se encantou com ela e praticamente a comprou de seu pai, que era bem mais humilde.  Ela tinha na época do casamento vinte anos. Ele a cobriu de belos vestidos, de jóias e luxo. Mas quem diz que o coração se deixa encantar por bens materiais? Aquela jovem não gostava do senhor e vivia infeliz.
Três anos após o casamento nasceu o único filho.
A rotina interminável daquela jovem foi a tornando triste, aquele casamento infeliz a sufocava. Os eventos sociais a entediavam. Sua única distração era a leitura.
Um dia, num destes eventos sociais, ela conheceu um jovem professor. Ele falava de coisas que ela nunca ouvira falar, falava de literatura, de artes, de lugares e países e muitas outras coisas. Seu coração de mulher inteligente e sagaz se encheu de alegria.
Ela se calou por um instante. Eu, que a ouvia com atenção, pensava como ela poderia saber tantos detalhes. Esperei que ela continuasse.
-Por meses ela teve a oportunidade de encontrar várias vezes com aquele professor e cada vez mais ela se encantava com ele. Pensava que poderia escutá-lo por horas a fio sem se sentir cansada ou entediada. Ele, por sua vez, gostava de conversar com ela e a olhava de maneira comprometedora.
As conversas entre eles começou a ficar mais ousada. Começaram a se encontrar às escondidas. E quando se deram conta estavam completamente envolvidos. Seguindo o curso das coisas ela acabou por se entregar a ele. E por muitos meses se entregaram a um louco e perigoso amor. As pessoas pareciam não desconfiar. Eles foram ficando cada vez mais apaixonados, ousados e descuidados.
Numa noite, em que seu marido havia viajado, ela levou seu amado para dentro de sua casa. Para a cama que dividia com o esposo.
Estavam nus e se amando como se fosse aquele o último dia de suas vidas.
De repente a porta se abriu. O marido entrou sem se importar com o filho de cinco anos que estava do lado de fora.
-Sua vagabunda. Eu bem que estava desconfiado. Sempre se faz de santa e pudica comigo e para este desqualificado, para este ingrato é assim que você se entrega? Como uma meretriz? Você desonrou meu nome, você não mereceu nada que eu fiz por você. Você nunca mereceu o meu amor e o zelo com que sempre cuidei de você.
Eles estavam apavorados e a criança olhava assustada a cena. Ela olhou para o filho e se sentiu culpada, se sentiu a pior das mulheres.
Eles permaneceram calados esperando a sentença que os aguardava. E assim se fez, ele deu dois tiros em cada um.
Depois virou e saiu.
A mulher que cuidava do menino o tirou dali depressa e chamou a criadagem.
O esposo traído e assassino fugiu da cena.
O menino estava mudo olhando pro nada.
Retiraram os corpos dali. Foram enterrados fora da cidade como banidos da sociedade.
Aquele quarto ficou trancado por muitos anos. Como se não pertencesse à propriedade.   Ali foram dispostos todos os pertences da jovem senhora.
Muitos anos depois, após a morte do pai, o filho providenciou  o traslado dos restos mortais da mãe para o túmulo da família, no jardim. Ele então fez uma última homenagem à ela e partiu. Foi morar em outra cidade.
Ele casou, teve filhos, mas aquela lembrança sempre o perseguiu. Nunca foi feliz, nunca foi capaz de amar e confiar em uma mulher. Aquele fantasma o perseguia e ele acabou se suicidando aos trinta e sete anos. E seus familiares nunca mais voltaram ali. Talvez nem soubessem da existência daquele casarão.
Como vê, nesta casa aconteceu uma tragédia que começou a ser desenhada no dia em que o pai daquela jovem garota a entregou  ao marido  a quem ela se dava como a um carrasco.
Aquela mulher de coração livre e alma sonhadora não suportou o jugo de um casamento sem amor.
Agora vou te levar até o quarto em que tudo aconteceu. Você quer?
-Não sei se tenho coragem.
-Venha.
Mais uma vez  me deixei levar, como se uma força mística me impulsionasse, e a segui.
Ao entrar no quarto eu olhei o ambiente. Estava cuidado e limpo como a sala. Olhei todas as peças. Era como se revisse a cena. Observei cada detalhe. Na penumbra daquele ambiente macabro eu olhei para a parede oposta e reparei no que estava ali. Ao olhar o quadro eu não acreditei no que via. Olhava para o quadro e olhava para a mulher. Para me certificar, eu disse:
-Como você se chama? Quando for contar a história, gostaria de dizer quem a narrou.
Muito tranquilamente ela disse:
-Ana Emília Almeida Araújo.
Neste momento um frio percorreu meu corpo. Eu senti uma vertigem e desmaiei. Não sei se de medo, de susto ou de incredulidade.
Quando acordei estava no jardim da casa. Deitada na grama.
Não sei se aquilo foi realidade, sonho, pesadelo, miragem. O fato é que a partir daquele dia eu fui atrás daquela história. Passei  muito tempo pesquisando, procurando documentos, escritos e fatos. Não encontraria mais nenhuma testemunha dos fatos. Tentei encontrar o paradeiro dos descendentes desta mulher. Mas nunca obtive sucesso. Mas no fim, constatei que tudo ocorreu exatamente como me foi contado. Os documentos batiam com as datas. Umas poucas palavras deixadas. Provas frágeis mas que mostravam a veracidade daquela história.
Eu, que nunca acreditei nestes fatos sobrenaturais, em espíritos ou em comunicação de seres mortos com seres vivos, tive que me curvar. De alguma forma aquela mulher me contou sua trágica história.
Tratei então de cumprir minha promessa e levar adiante essa história para que ficasse conhecida, ainda que por poucas pessoas. Certamente ela chegou ao lugar certo…
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 28/10/2021
Alterado em 28/10/2021
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