Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

Sina
          Aquela fazenda era linda. Da varanda da casa centenária, que estava com a família desde o bisavô do atual proprietário, via-se o belo por do sol e as plantações que perdiam de vista. Do outro lado via-se os animais sempre muito bem tratados. Era uma fazenda próspera e produtiva. Naquela época, no início dos anos 1960, vivia ali uma família feliz, unida e amorosa. O casal tinha cinco filhos. Os quatro mais velhos foram estudar na capital, mas sempre vinham visitar os pais ou passar as férias. O mais novo, considerado temporão, tinha dezesseis anos. Ainda vivia na companhia dos pais e aguardava o tempo para ir cursar faculdade. Foi nessa época que tudo aconteceu.
Há cerca de quinze anos, uma linda menina foi deixada na porta da casa da fazenda. O casal que só tinha meninos se encantou com a criança e decidiu que ia ficar com ela. Deram o nome de Catarina. Na época,  Atílio, o filho mais novo, tinha um ano. E os dois foram criados juntos, como irmãos.
Nessa mesma época chegou à fazenda um empregado com sua esposa e filhos. O mais novo tinha dois anos. Luiz, Atílio e Catarina cresceram juntos. Brincavam, se divertiam, tomavam banho de rio e cachoeira. Tornaram-se inseparáveis.
Já na adolescência os sentimentos começaram a aflorar. Luiz se apaixonou por Catarina. Falava sobre seus sentimentos com seu melhor amigo. Mas Atílio também se sentia apaixonado por ela. Não tinha coragem de falar com Luiz sobre seus sentimentos. E se sentia culpado por saber da paixão do amigo e por ter sido criado como irmão dela, embora soubesse que não eram irmãos de sangue. Sentia-se num conflito que machucava seu coração. Catarina por sua vez sentia-se atraída pelos dois e não conseguia definir qual deles era seu verdadeiro amor. Zombava deles que estavam sempre aos seus pés.
Numa tarde Catarina chegou em casa gritando e pedindo socorro. Os três amigos estavam na beira do rio quando Atílio caiu e desapareceu nas águas, Luiz foi tentar socorrê-lo e também sumiu. Todos correram para o rio e mergulhavam tentando encontrar os dois. Não tiveram sucesso. Pediram ajuda. Muito depois chegaram mergulhadores e os bombeiros para tentar encontrar, provavelmente, os corpos. Algum tempo depois foram encontrados presos num emaranhado de galhos nas águas que eram bem profundas.
O desespero foi geral. Os pais  das duas vítimas estavam desolados. Uma tristeza sem fim. Nunca houve nada mais triste por aquelas bandas que o velório de dois jovens de dezesseis e dezessete anos, cheios de vida, de planos e sonhos para o futuro.
Sem saber exatamente o que havia acontecido e com Catarina, a única testemunha, dando sinais de um tipo de  amnésia, se recusando a dar detalhes do ocorrido, as famílias dos jovens começaram a se acusar e colocar a culpa no filho do outro. Por fim a família de Luiz deixou a fazenda. Os pais de Atílio tentavam se consolar e seguir em frente, mas Catarina estava sempre muito mal. Estava desesperada. Chorava sem parar. O tempo ia passando e ela não se recuperava. Os pais estavam preocupados e não sabiam o que fazer. Já tinham enterrado o filho, não queriam ver a filha morrer em vida.
Todas as tardes Catarina ia até o rio. Sentava ali e ficava conversando com seus amados amigos. Olhava para as águas, chorava, lembrava de tudo que viveram e algumas vezes gargalhava como se estivesse perdendo a razão. Muitas vezes seu pai ia buscá-la e ela relutava em acompanhá-lo. Dizia que não podia deixá-los sozinhos. Todos temiam que ela um dia se atirasse no rio.
A tarde caia naquele dia frio e Catarina não voltava para casa. Seu pai foi até o rio. Ela estava ali e conversava com os amigos como se os estivesse vendo.
—Com quem está falando, minha filha?
—Com Atílio e Luiz. Olha, estão bem ali.
—Não tem ninguém ali. Vamos embora. Está frio, você vai se resfriar.
—Eu não vou. Não posso deixá-los sozinhos. Eles vieram conversar comigo.
Seu pai tentou argumentar que não havia ninguém ali e ela parecia estar em surto psicótico. Ele a obrigou a ir embora. A partir desse dia ela parecia cada vez mais desequilibrada e dava sinais que estava perdendo a razão. Todos os dias ia até a margem do rio e dizia que eles estavam ali pra conversar com ela. Tentaram todos os tipos de tratamento disponíveis na época, mas nada a fazia voltar ao equilíbrio e sanidade mental. Ela tentava explicar que não estava louca, que conversava realmente com seu irmão e o amigo, mas não acreditavam.
Ela tentou o suicídio cortando os pulsos.
De comum acordo entre médicos, psicólogos e os pais, decidiram interná-la em um hospital psiquiátrico. Ela chorou, implorou que não fizessem tal violência.
Ela chegou ao hospital e muito rápido percebeu que as coisas ali não seriam fáceis. Ela tinha apenas dezessete anos. Ela sentia saudade de suas conversas com Atílio e Luiz. Desde que morreram há dois anos, todos os dias  passava algumas horas na margem do rio. Agora estava ali completamente só. Em sua volta pessoas com todo tipo de insanidade mental, ela assistia a surtos horríveis. Sentia que se permanecesse ali acabaria como eles. Algumas vezes se rebelava e era mandada para tomar choques elétricos. Depois de tomá-los ela ficava completamente desnorteada, atordoada como se estivesse fora do mundo. Ela insistia em conversar com o irmão e amigo que dizia estarem ali e eles lhe davam remédios fortes que a faziam dormir e a deixavam debilitada.
Três anos depois de ser internada, durante um choque elétrico ela teve uma parada cardíaca que foi revertida. Mas sua saúde ficou debilitada. Os remédios a deixavam cada vez mais abatida. Sentindo que seu fim estava próximo e tendo todos os dias seus amigos em seus sonhos dizendo que esperavam o dia de buscá-la e que seria para breve, ela pediu para chamar seus pais e um padre pois queria confessar.
Seus pais chegaram trazendo o padre. Ela pediu pra falar primeiro com eles. Impressionados com o estado em que ela se encontrava, choraram.
—Não chorem por mim. Talvez seja isso que eu preciso passar. Sei que meu fim está próximo. Eles disseram que em breve vão me buscar. Vou contar tudo o que aconteceu. Vocês nunca souberam, mas os dois estavam apaixonados por mim. Atílio sabia da paixão de Luiz, mas Luiz não sabia da paixão de Atílio. Eu sempre gostei muito  deles e não conseguia decidir qual eu queria para ser o amor da minha vida. Sentia que amava os dois. E confesso que ficava provocando e dando esperança para ambos. Sei que agi mal, mas eu tinha apenas quinze anos e gostava daquele jogo de sedução. Naquele dia Atílio e eu estávamos ali próximos da margem do rio. Ele me beijou e eu senti que era a ele que eu queria me entregar, entregar minha vida. Nós nos deitamos na relva e começamos a nos acariciar. Cada vez mais queríamos aquele momento sublime. De repente Luiz chegou e nos chamou de traidores, me chamou de vagabunda. Eles se ofenderam com muitas palavras horríveis até começarem uma luta corporal. Estavam bem perto do rio e Luiz deu um soco no rosto de Atílio. Ele se desequilibrou e caiu nas águas. Voltou uma vez à superfície e depois afundou, talvez pelo cansaço ou por estar atordoado pelo soco. Luiz desesperado pulou no rio tentando salvar o amigo. Eu não o vi mais e saí correndo pra buscar socorro. O resto da história os senhores conhecem. Eu nunca fui louca. Sentia culpa e ia até o rio conversar com eles. Depois de um tempo eles começaram a aparecer e conversavam comigo. Mas nunca ninguém acreditou. Até que eu tentei me matar e vocês me colocaram neste lugar tenebroso. Não sabem o que passei aqui, mas eu pensava que estavam me castigando, que eu tinha que pagar por meu erro e pelo que aconteceu. Todos os dias, depois daquele, eu pensava que devia ter pulado no rio e morrido junto com eles, como vivemos juntos. Eu sempre tive muita gratidão por me acolherem e me criarem como uma filha. Vocês não mereciam passar pela dor que passaram, mas eu também não merecia passar pelo que estou passando aqui. Mas eu os perdoo e peço perdão pela dor que os fiz passar. Agora eu sei que vou ao encontro dos meus queridos e vamos encontrar a paz e a felicidade.
Seus pais choravam e nem conseguiam dizer nada. Abraçaram a filha.
Logo depois ela confessou e contou ao padre toda a história e seus pecados
Dias depois seu estado de saúde piorou, ela estendeu seus braços e disse:
—Atílio, Luiz, até que enfim vocês chegaram. Estou pronta. Vamos?
E deu o último suspiro.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 01/05/2024
Alterado em 04/05/2024
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