Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

Sobre Amores E Segredos
Ele chegou decidido. Precisava pelo menos uma vez na vida ter coragem, agir como um homem e não como um menino acuado e amedrontado. Afinal aqueles dois anos frequentando as sessões de terapia tinham que ter deixado algo de útil nele. Ela era uma excelente psicóloga e ele sempre se boicotando.

—Quero que me escute até o fim. Não preciso que me julgue ou que tente me entender. O que eu preciso é abrir meu coração por inteiro. Talvez tudo o que eu precisava desde o início era isto. Mas eu não sei o que se passa comigo. Nesta minha vida torta eu vou me enrolado cada vez mais. Vou me escondendo até de mim mesmo. Vou me enredando em um emaranhado de sentimentos, de pensamentos, de decisões erradas. Vou agindo como um menino que tenta passar a imagem de homem, que tenta passar a imagem de maturidade emocional e psíquica, tenta parecer forte. Mas no fundo eu sei que não sou nada disso. — engasga e chora

—Acalme-se, respire fundo. Estou aqui pra te escutar sem julgamentos.

—Eu sou um médico competente, forte, dedicado, decidido, firme em minhas condutas e diagnósticos. Sempre acerto e já salvei tantas vidas. Mas por baixo deste médico existe uma criança insegura emocionalmente, desequilibrada psiquicamente, frágil, infeliz, triste. Quando eu tinha exatos quarenta e dois anos eu me apaixonei pela primeira vez na vida. Foi numa viagem que a conheci. Estávamos no mesmo grupo de pessoas da nossa cidade. Foi paixão de primeira, no primeiro olhar. À medida que a conhecia tinha a certeza que ela era a mulher da minha vida. Éramos praticamente da mesma idade. Tínhamos os mesmos interesses, Gostávamos das mesmas coisas e assuntos. Quando eu a beijei um mundo novo se abriu pra mim. O mundo dos sentimentos, do amor. Quando transamos eu senti que nunca foi tão bom, que nenhuma mulher nunca conseguiu e nem conseguiria mexer comigo daquela forma. Mas ela esqueceu de me dizer que era casada. Quando voltamos e ela abriu a verdade pra mim foi como se meu mundo desabasse. Ela dizia que tinha um relacionamento aberto com o marido, que na verdade cada um tinha sua vida e nem tinham mais uma vida amorosa, mas que não queria se separar, que era conveniente para os dois seguirem casados. Eu bati o pé, briguei, implorei pra que ficasse comigo, mas ela não mudou de idéia. Ou era assim ou a gente parava por ali. Eu não queria parar por ali, não imaginava mais minha vida sem ela e fui aceitando tudo o que ela queria. Vivemos mais de nove anos assim. Éramos discretos e parece que ninguém sabia e talvez ninguém se interessasse em saber. — ele se calou como que a espera de algum sinal dela que disse:

—E como acabou esta história? Parece que acabou, não é? Quer continuar? Ou prefere terminar outro dia? — ele respirou fundo e continuou:

—Naquele dia eu estava no hospital. Chamaram o cardiologista de plantão com urgência e eu me apresentei. Uma mulher estava aparentemente infartando e precisava de cuidados especiais. Eu cheguei checando todos os aparelhos e finalmente fui examiná-la. Quando a olhei, não acreditei. Meu amor estava ali, desacordada, um quadro grave e crítico. Tinha que ser forte, competente e profissional, tinha que salvar a vida dela. Por minha cabeça tantas coisas se passavam. Embora nunca tenha acreditado que existe um Deus que pode fazer alguma coisa por alguém, eu pedia à divindade que me ajudasse a salvá-la, tamanho era o meu desespero. Será que nunca teve nenhum problema cardíaco antes ou me escondeu alguma coisa? Eu precisava correr contra o tempo e contra a fragilidade em que ela estava. Todos os procedimentos foram tomados e eu acreditava que ela se salvaria. Foi quando ocorreu a primeira parada cardíaca. Eu tentei de tudo e ela foi reanimada. Pouco tempo depois veio a segunda parada. Como foi difícil! Mas ela voltou à  vida. Quando pensava que o pior já tinha passado, veio a terceira parada cardíaca e eu  tentava fazer o impossível. Inútil. Estava consumado o óbito. Eu me debrucei sobre ela. Saí e fui chorar no banheiro. Só depois fui encarar a família, inclusive o marido. Estava destruído, mas tive que concluir meu plantão. Não sei de onde tirei forças. Ao sair dali, entrei no carro e fiquei rodando pela cidade. Chorava, deixava vir a dor do luto, da perda e, mesmo sabendo que fiz tudo que pude, veio a culpa. Que médico era eu que não pude salvar a vida da mulher que tanto amava? Que homem era eu que nunca tive coragem de lutar, de insistir em tirá-la do marido e fazer dela a minha rainha, a mulher mais amada do universo? A minha mulher, a minha companheira? Que ser era eu que nem podia mostrar ao mundo a minha dor, o meu luto, gritar ao mundo que a amava e estava sofrendo? Que espécie de homem era eu que sempre aceitei que mesmo a gente se amando, ela continuasse ao lado do marido? Vivemos um amor ardente, fomos felizes, nos entregávamos como se não existisse mais ninguém no mundo. Nos mantivemos no anonimato. E eu aceitei a situação, mesmo amando tanto. E agora ela estava ali, morta. Tudo acabado, meu coração sangrando, minha vida destruída. Fui pra casa e chorei todas as lágrimas da minha vida. Acompanhei de longe seu sepultamento e um pedaço do meu coração foi sepultado com ela.

—Por que nunca me falou sobre este episódio de sua vida? Era importante e faria muita diferença em toda a terapia.

—Não falei porque nunca tive coragem. Estive bloqueado desde aquele dia há mais de três anos. Quem sabe foi o resultado da terapia  que me fez ter coragem, que fez o homem falar mais alto em mim que a criança? Mas eu ainda não acabei. Apesar de achar que o tratamento aqui só me fez bem, eu continuo com minha vida torta, sempre metendo os pés pelas mãos, sempre misturando sentimentos, sempre deixando a ética e o bom senso de lado quando o assunto é gostar, amar, sentir, fazer escolhas. E eu devo lhe dizer que o que eu achava impossível está acontecendo. Eu estou amando novamente. — um pouco sem graça ela diz

—Que ótimo! Você merece ser feliz. O que isto tem de torto? Nenhuma forma de amor é ruim. Amar só faz bem.

—Eu estou amando a minha terapeuta e parece que isto não é muito ético. — ainda mais sem graça ela diz:

—Não é incomum um paciente se sentir apaixonado pelo terapeuta.

—Não é nenhuma transferência, não é nenhuma forma de fantasia. É de verdade, é pra valer.  E por isto eu estou aqui pra me despedir, pra dizer que estou encerrando hoje as minhas sessões com você. Sou um homem de quase cinquenta e cinco anos. Pra este caso, pra este amor eu preciso achar a cura sozinho. Adeus.

Ele se levantou e saiu. Ela ficou parada, sem ação, como se estivesse presa a si mesma e sem coragem de sair do lugar. Duas lágrimas rolaram por sua face e disse em voz alta:

—Não é nada ético, mas um dia eu ainda vou te dizer que eu também me apaixonei irremediavelmente por meu paciente…


Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 15/01/2025
Alterado em 23/01/2025
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