Nádia Gonçalves

A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.

Textos

Na Falta De Céu Ninguém Voa
A chuva caia sem parar há uma semana. O ribeirão e o riacho transbordaram. As estradas estavam intransitáveis. Sem poder sair dali ela se sentia desconfortável. Como, depois de de tudo que já vivera com ele, ainda foi se meter em sua casa, em sua fazenda? Sentia-se uma idiota, sem amor próprio. Parecia que quanto mais amor e tesão ele sentia por ela, mais a desprezava e quanto mais ele a desprezava mais ela o amava e desejava. Estava virando um círculo vicioso, uma doença. Não tinha saída nem cura. Estava em férias e no fundo estava gostando de ficar ilhada ali com ele mesmo com todas as grosserias e  desprezo com que a tratava. Como podia ter chegado a este ponto?

Olhava pela janela. A noite estava muito escura, a chuva não dava trégua. Uma ou outra lágrima rolava por sua face. Pensava nele ali no quarto ao lado e a vontade que tinha era ir lá e se jogar em seus braços. Sabia que ele queria o mesmo, mas permanecia quieto. Precisava encontrar uma saída. Mentia pra si mesma que quando saísse dali jamais voltaria para seus braços. Mas como se libertar desse homem que tanto mal lhe fazia? Não entendia porque ele agia assim. Tinha ciúmes e a queria sempre por perto, mas não valorizava o que tinha.

No dia seguinte ele entrou em casa à tarde e a olhou como quem diz “ainda está aí?”, ela se sentiu sem chão e teve vontade de sumir. Disse que ia embora e sem pensar em nada pegou suas coisas, que estavam prontas a espera do tempo melhorar, e saiu porta a fora. Entrou  no carro e foi embora. Ele foi atrás. Era uma temeridade sair com aquele tempo. Seguindo atrás ele  parecia se divertir com as trapalhadas dela. Até que o carro atolou. Ela saiu e olhou a situação. Calmamente ele chegou e disse pra pegar sua bagagem e voltarem. Ela estava molhada e suja. Chorou e ele a abraçou. Voltaram para casa.

Entraram e ele a conduziu para o chuveiro. Tirando sua roupa deixou que ela se aquecesse na água quentinha. Depois deu banho nela e ali mesmo se amaram com o calor e frenesi de sempre. Ele a deitou em sua cama e a abraçou com carinho, a enlaçou e a fez se sentir a mais amada e desejada das mulheres. Sabia muito bem como fazer isso. Sabia muito bem como fazê-la fraquejar. Aninhando-se em seus braços ela perguntou:

—Por que faz isto comigo? Por que me leva do céu ao inferno num piscar de olhos? E eu sempre me entrego, volto aos seus braços depois de ser escorraçada, humilhada, triturada. Não consigo te entender. Seus olhos dizem  sim, mesmo quando me despreza.
—Nem eu me entendo. Eu tenho um medo terrível de amar, de me entregar, de me abrir e me sentir vulnerável. O amor é uma fraqueza que sempre machuca, sempre é contraditório e faz mal a quem se entrega a ele. Eu prefiro ficar na minha.
—E quando sente que está cedendo, prefere desprezar pra fugir dos próprios sentimentos? Prefere sofrer  a se entregar?
—Pense o que quiser. Não espere de mim amor romântico, açucarado.  Não vai ter.
—Acha que mereço ser tão humilhada e desprezada?
—Quando a gente está nos braços do outro não há desprezo, apenas muito carinho, tesão e prazer. Isto não lhe basta?
—Bastaria, se depois você não me tratasse como se eu fosse um nada.
—É só assim que eu sei ser. Não posso dar mais que tenho.

Nos próximos dois dias eles ficaram juntos numa explosão de desejo, prazer como se nada mais existisse lá fora e a vida terminasse ali. Como se toda a vida estivesse contida naquele quarto, naquela cama, em seus corpos em brasa e tesão permanente.

A chuva se foi, o sol voltou a brilhar. Ela se despediu dizendo que não queria mais vê-lo, que não podia viver assim com tanto descaso. Saiu sem olhar pra trás, mas as lágrimas rolavam por sua face. Seu coração doía por aquele adeus e ele não demonstrou nada, nenhum sentimento ou tristeza, o que a deixava ainda mais magoada.

Ela seguiu sua vida. Procurava se acostumar com a dor da ausência dele. Afinal era melhor sofrer sem ele que conviver com o desprezo do homem que ainda amava com todas as forças. Tinha agora outras prioridades, tinha mais a cuidar e decisões a tomar. Sabia que dali pra frente tudo mudaria em sua vida.

Num dia ela caminhava pela rua e ele passou e a viu. Ficou pálido de surpresa e num impulso a procurou em sua casa. Ela abriu a porta e desconcertada nem sabia o que falar ou como agir. Ficou olhando pra ele feito uma criança:

—Por que você não falou comigo de sua gravidez? Por que não me disse que estava com um filho meu na barriga? Eu merecia saber.
—Este filho é só meu. Você não tem direito de me cobrar nada e nem eu vou te cobrar nada. Vou criá-lo sozinha. Aliás, por que pensa que é seu? Pode ser de outro. Tem quase seis meses que não nos encontramos.
—E este bebê tem quanto tempo? — baixinho ela disse
—Seis meses.
—Como eu imaginava. É meu, eu sei. Não esteve com ninguém durante este tempo. Sempre sei tudo sobre você.
—Não sabe tudo, nem sabia que estou grávida.
—Sei o que me interessa saber. Nem podia imaginar que aqueles dias tão intensos e apaixonados resultariam em um bebê.
—Foi um vacilo meu, mas quero este bebê com todas as forças que tenho em mim.
—Por que não está trabalhando?
—Preciso de repouso. Não sou mais uma garotinha. Uma gravidez depois dos quarenta pode trazer alguns problemas.
—Junte suas coisas. Você vai pra fazenda comigo. Vou cuidar de você e do nosso filho.
—Você está falando do meu filho. Não se preocupe comigo e nem com ele. Eu te isento de toda a responsabilidade por nós.
—Você não tem o direito de privá-lo de ter um pai e nem de me privar de conviver com meu filho. Como você disse, você não é mais criança e nem eu. Somos adultos. Eu quero a responsabilidade por ele e por você. Aliás, acho que estava procurando um motivo pra te pedir pra vir morar comigo.
—Pra quê? Pra quando você tiver seus surtos de insegurança e imaturidade me desprezar, me humilhar, jogar na minha cara que eu fiz de propósito?
—Tente me entender se vez ou outra isso acontecer. Você me conhece. Eu gosto tanto de você. Eu sinto tanto a sua falta, eu tenho tanta vontade de te tomar em meus braços e te proteger, te amar, te fazer feliz. De ser feliz.
—Você nunca quis ter filhos.
—Quando te vi grávida, soube que era meu e senti uma emoção que nunca experimentei na vida. Eu preciso de ajuda, preciso melhorar e só você e este filho podem fazer isso por mim. Já sabe se é menino ou menina?
—É um menino. — ele sorriu.

Ele acabou a convencendo ir com ele. Sabia que ele não ia mudar da noite pro dia, mas prometeu se esforçar. Viveram dias tranquilos e quando ele se sentia inseguro e falava alguma palavra áspera ela tentava entender. Jamais imaginou que ele fosse se encantar com o filho que estava a caminho. E foi justamente isto que o fez procurar mudar um pouquinho a cada dia.

A gravidez foi difícil no final, tinha que ser acompanhada de perto e tiveram que tirar o bebê três semanas antes por causa dos riscos para a mãe e a criança. No entanto durante o parto ocorreram complicações sérias e no dia seguinte ao nascimento, ela faleceu. Ele ficou desolado e só então soube o quanto a amava. A alegria do nascimento se misturou com a tristeza da perda. E ele chorou. Deixou que toda emoção e dor se manifestassem.

Durante a cerimônia fúnebre ele conversava com ela: “Engraçado eu te dizer agora o que você sempre quis ouvir, estranho eu declarar agora o meu amor por você, mas sei que de algum lugar você vai me ouvir. Sei que muitas vezes te fiz chorar, mas sei também que te fiz feliz. Você sempre falava que meus olhos diziam sim e é verdade. Sim, eu sempre te amei, mas tinha medo de me expor e parecer fraco. Você me deixa de presente nosso filho e saiba que vou ser pai e mãe pra ele. Prometo que não vou ensinar as minhas limitações, as minhas fraquezas, mas sim a sua grandeza, a sua liberdade, coragem e fortaleza. Vou transmitir a ele não os meus medos e valores retrógrados e sim a sua capacidade de se atirar de cabeça, seus valores tão nobres. Você sempre vai ser o norte em nossa vida. Sinto muito que compreendi tudo isso tão tarde e perder você está doendo muito em mim. Dói tanto que terei que fazer desta dor a minha força pra seguir com nosso filho. Perdoe-me e de onde estiver vele por nós, mande energias positivas e nos ensine a suportar a sua ausência. Nunca vou te esquecer e nem vou deixar que nosso filho te esqueça. Vou falar de você pra ele todos os dias.”

Ele mudou sua vida, aprendeu muitas lições e seguiu com seu filho. O menino foi crescendo  e ele crescendo junto, aprendendo sobre a vida e sobre viver. Várias vezes sentiam a presença dela e se sentiam cheios de energia, vida e coragem pra seguir, pra alcançar dia melhores, dias de paz, pra serem melhores no amor, melhores na dor. Muitas vezes conversavam com ela, sorriam e sentiam-se uma família completa.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 31/01/2025
Alterado em 02/02/2025
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