Nádia Gonçalves
A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.
Textos
Águas Turbulentas
Apoiada no parapeito da varanda ela admirava a cachoeira ao longe. Não se cansava de sentir a força e poder daquelas águas. Construiu sua casa ali para ter a queda d’água bem ao alcance de seus olhos. E quando tomava um banho naquelas águas abençoadas elas levavam todas as energias negativas e a enchia das positivas. Era um lugar bastante ermo, mas ela não tinha medo. Tinha o corpo fechado. Seu guia espiritual enviado pelo Supremo se encarregara disto há muitos anos.

Acordou de sua viagem ao ouvir o carro parar lá fora. Era ele. Há muitos dias vinha adiando aquele conversa definitiva e difícil. Olhou uma última vez a cachoeira ruidosa pelo grande volume de águas que recebeu das chuvas dos últimos dias. Pensou que ela tal qual a cachoeira suportava todas as águas turbulentas que a vida lhe oferecia. Ele entrou e a cumprimentou. Ela se virou e fez um aceno com a cabeça. Não seria uma conversa fácil, mas estava preparada e cheia de luz.

—Sente-se e fique à vontade.

—Prefiro ficar de pé. Só estou aqui porque você disse que precisa falar comigo.

—Se está aqui só por isto, sente-se. Vou me sentir mais confortável. É muito deselegante conversar assim, de pé. Sente-se de frente para a cachoeira.

—Eu sou mesmo deselegante, mas se faz tanta questão eu me sento. Estou aqui pra te ouvir. Fale o que quiser, lave sua alma.  — ela sorriu com certo sarcasmo

—Pensa que preciso lavar minha alma? Cobrar alguma coisa? Falar desaforos pra você? Você está enganado. Definitivamente você não me conhece.

—Saiba que não vou devolver nada do que  me deu.

—Alguma vez eu te cobrei alguma coisa? Tudo que te dei, tudo que fiz por você foi por amor. O que se faz por amor não se cobra. Você pensava que me enganava, que tirava o que podia de mim. Você nunca tirou nada de mim. Eu dei porque quis. Você nunca me enganou. Eu te amei e isto me basta. Se você não me amou todo este tempo que esteve comigo, o problema é seu. Amor não se cobra.

—Quem disse que não te amei? Não sou homem de ficar com uma mulher sem amor, de  fingir carinho e paixão. Você não foi feliz comigo?

—Sim. Fui feliz com você. E muito. Na verdade eu tive de você muito mais que você teve de mim. Eu amei e fui feliz. Isto é muito mais importante que carro, apartamento, dinheiro. E de mim você só queria estas coisas menores, mesquinhas. Pois leve com você o que veio buscar. Eu dei de coração, não vão me fazer falta. E o tempo que você me fez tão feliz e realizada vale muito mais que tudo isso.

—Eu também fui feliz com você. Ou acha que eu fingia a paixão que sentia, o prazer que tinha em sua cama e em sua companhia. — ela riu com ironia

—Não duvido que você tinha prazer comigo. Olhe pra mim, eu sou uma mulher que ama com intensidade, sei fazer feliz e dar prazer ao homem que amo.

—Você se acha muito, não é?

—Não me acho, eu sou. Mas se você acha que merece um pagamento pelo tempo que ficou comigo, fique com tudo que te dei. Se acha que pode se comparar a um garoto de programa, que seja. Mas saiba que eu não preciso de um garoto de programa.

—Não admito que me chame de garoto de programa. Não preciso de você pra nada. Pra que me chamou aqui? Pra me humilhar? Não vai conseguir. Eu sou mais eu. Ou foi pra despejar toda sua mágoa e dor sobre mim?

—Chamei pra dizer que você não precisava ter me enganado, não precisava estar na minha cama quando já estava na cama de outra. Não sou mulher de mendigar amor. Não sou mulher de aceitar traição. Quando estou com alguém me entrego por inteiro e mereço o mesmo. Saiba que apesar de tudo eu estou inteira. Não preciso te humilhar nem despejar nada sobre você. Na verdade eu posso ser tão fria quanto você. Nunca sofri por quem não merece. Não vai ser agora que vou sofrer.

—Você se acha superior a mim. Sempre dando uma de forte, de inatingível. Sei que você está sofrendo. Sei que ma ama.

—Olhe para a cachoeira. Ela está barrenta, está chorando pelo tanto de água que está suportando, pelas águas sujas que estão tirando seu brilho, pela turbulência que mais uma vez está tirando seu sossego. Mas ela aguenta firme e sabe que tudo passa. É capaz de entender?

—Não sou tão burro quanto pensa.

—Espero que como eu e a cachoeira, seja capaz de superar todas as enchentes que a vida lhe trouxer. Espero que seja feliz e que tudo o que te dei, não só as coisas materiais, mas sobretudo as espirituais sejam capazes de te fazer melhor. Seja feliz. Agora saia. Adeus.

Sem mais nenhuma palavra ele virou e saiu. Ela debruçou sobre o parapeito e olhando a cachoeira sorriu:

— Nada pode nos derrubar ou tirar nosso brilho. Amanhã seremos novamente soberanas, empoderadas, senhoras da vida e destino.




Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 24/04/2025
Alterado em 25/04/2025
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