Nádia Gonçalves
A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.
Textos
O Embate
Estávamos em janeiro de 1971. Como sempre estávamos passando férias na fazenda. Minha irmã, meus dois irmãos, eu e meus pais. Sempre apareciam  alguns primos ou tios por lá. Era uma festa. A gente se divertia pra valer. Banhos de rio, de cachoeira, fruta no pé, quitandas feitas no forno à lenha, comida sempre saborosa. Não precisava de nada melhor nas férias escolares.

Minha tia mais querida e divertida estava lá. Ela nos chamou para visitar uma família do sítio ao lado, velhos conhecidos que moravam em sua propriedade e tiravam de lá seu sustento. Saímos de casa por volta de seis horas da tarde. Íamos a pé apesar de ser um pouco longe. Era noite de lua cheia e o tempo estava agradável. Tudo era festa e alegria. Chegamos lá e fomos recebidos com a simpatia e alegria de sempre.

Minha mãe e minha tia conversavam com a dona da casa e suas filhas. Meu pai conversava com o dono da casa e seus filhos. Nós ficávamos ali por perto pois sabíamos que sempre contavam histórias e gostávamos de escutar. Sempre tinha histórias de assombração, de fantasmas e outras coisas sobrenaturais. As mulheres, na cozinha, preparavam um lanche sempre saboroso pra nós.

Quando saímos de lá já passava de nove horas da noite. A lua estava muito clara e nem precisávamos do lampião para clarear o caminho. Meu irmão mais velho, na época com treze anos, ia na frente. A trilha era estreita e íamos um a um. Na cabeça as histórias de assombração. Qualquer barulho nos assustava. De repente o mato se mexeu e um barulho estranho fez com que todos gritassem ao mesmo tempo. Meu pai pediu calma e silêncio. Estávamos apreensivos e amedrontados. Meu pai disse que devia ser uma brincadeira do vizinho para nos assustar. Seguimos em frente e o mato ia se mexendo ao nosso lado. De repente uma sombra imensa apareceu do lado. Apavorados saímos correndo. Já bem na frente vimos que meu irmão mais velho não estava entre nós. Meu pai voltou pra procurar.

Chegamos na fazenda e minha mãe pediu aos trabalhadores pra irem ajudar meu pai. Estávamos apavorados. Minha mãe chorava sem parar. Não conseguíamos dormir, esperávamos por notícia. Eles procuravam por todo lado e nada de encontrá-lo. Já raiava o dia quando ao passar pelo mesmo caminho encontram Rafael desmaiado próximo ao lugar que se deu o fato.

Chegando em casa minha mãe percebeu que ele ardia em febre. Ao acordar falava coisas desconexas com uma voz estranha. Achamos que ele estava delirando. Foi medicado para baixar a febre e meu pai deu um banho nele que mesmo assim não saia daquele torpor. Minha tia disse que estava muito estranho e que ela arrepiava toda vez que se aproximava. Falou que não estava parecendo coisa boa e que ia até à casa da vizinha que era benzedeira e pediria para ela vir benzê-lo. Minha mãe, desesperada, assentiu.

Dona Rita chegou. Estava espantada com a história que minha tia contou. Chegou perto da cama e começou a sentir arrepios e bocejar muito. Fez as suas orações, benzeu e disse à minha mãe que o caso não era pra ela. que chamasse o seu Manoelzinho do vilarejo de Barreiro. Meu pai se recusou e fomos pra cidade procurar recurso. O médico examinou e não encontrou nada. Disse que podia ser um resfriado forte já que ficou desmaiado no mato. Disse também que podia ser alguma coisa da cabeça pois ele não falava coisa com coisa. Fez a receita.

Os dias passavam e ele só piorava. Já não conseguia nem se alimentar. Estava ficando fraco e os delírios aumentavam. Falava coisas que não entendíamos e com uma voz que causava arrepios. Dias depois ele teve uma convulsão e meu pai o levou ao hospital onde foi internado. Fizeram todos os exames possíveis e não encontravam a causa dele estar daquele jeito. Dois dias depois um amigo encontrou meu pai e perguntou o que tinha acontecido pois o viu entrar com uma pessoa estranha no hospital. Ele respondeu que era o filho mais velho. O amigo disse que não era Rafael que meu pai carregava.

Este fato fez minha mãe ter uma intuição. Ela pensou no que dona Rita falou e disse a que queria que chamassem o tal Manoelzinho. Os médicos tinham dado alta pra Rafael. Não tinham o que fazer.  Meu pai queria levá-lo para a capital onde tinha mais recursos. Minha mãe disse que poderia levá-lo, mas antes queria que chamasse curandeiro.

Seu Manoelzinho chegou. Era um homem de uns sessenta anos. Magro, estatura mediana, barba rala e cabelos brancos. Estava vestido com roupas simples. Trazia nas mãos uma maleta. Quando entrou no quarto foi como se uma força o levasse pra trás. Ele protegeu com as mãos a região do coração e da garganta. Chegou perto da cama, sentia calafrios. Fechou os olhos e falou coisas que não escutamos muito bem.  E disse:

—Saiam todos. Preciso ficar sozinho com ele.

Meus pais relutaram,  mas dona Rita, que também estava lá, disse pra saírem. Ela vendo a aflição deles tentou consolar dizendo que ia ficar tudo bem. O curandeiro estava demorando, já estava lá há quase uma hora e meus pais estavam aflitos, queriam entrar. Dona Rita os puxou, disse que poderiam estragar tudo. Cerca de dez minutos depois ele saiu. Estava encharcado de suor, abatido. Exausto ele sentou e pediu água. Disse que meu irmão dormia serenamente e quando acordasse estaria bem melhor. Contou que um espírito vingativo se apossou do corpo dele para se vingar de quem lhe fez mal. Estava travando uma luta feroz com o espírito de Rafael, que tentava resistir e isto atingiu o corpo físico que ainda estava em desenvolvimento. Disse que isto poderia ter efeito nocivo e deixar sequelas. Perguntou porque demoraram tanto pra procurar ajuda. Meus pais se calaram.

—Agora ele já foi expulso e deixou o menino. É necessário fazer uma limpeza nesta casa e na casa da fazenda onde ele esteve. Cuidem do jovem. Talvez precise de médico para cuidar do corpo. — ele descansou, recuperou suas forças e depois fez a tal limpeza. Foi com meu pai pra fazenda e fez o mesmo lá.

Rafael dormiu algumas horas. Quando acordou estava sem febre, mas parecia não saber quem era nem onde estava. Disse que tinha fome e comeu um pouco. Minha mãe conversou com ele que aos  poucos a reconheceu. Mais de um mês já havia se passado desde aquela fatídica noite. Rafael agora já não parecia doente. Dona Rita passou a ir lá em casa com freqüência  benzê-lo e fazer orações. Aos poucos seu olhar vazio foi se transformando em um olhar mais vivaz. Ainda estava alienado e não ia bem na escola. Minha mãe preferiu deixá-lo fora da escola naquele ano Lentamente ele foi voltando ao normal, mas tinha alguns lapsos de memória e às vezes parecia distante da realidade. Tornou-se um  pouco triste, inquieto, arredio e ensimesmado. Não houve tratamento médico que desse jeito. Não se lembrava de nada, como se não tivesse vivido aquele período de tempo. Nunca mais voltou a ser o mesmo que era, como se a luta travada entre espíritos o tivesse machucado indelevelmente por dentro. Não falávamos sobre o ocorrido. Tínhamos medo até de lembrar daquela noite de terror.

O tempo passou. Uns dois anos depois voltamos a passar férias na fazenda. Mas nunca mais fizemos aquele caminho até à casa de dona Rita. Íamos  de carro e minha mãe pedia para não contar casos de assombração. Com o tempo deixamos de ter medo que alguma coisa sobrenatural voltasse a acontecer com algum de nós. Mas tínhamos e temos o máximo respeito pelos assuntos espirituais.

(Obra de ficção baseada em relato de fatos supostamente  ocorridos nos rincões das Minas Gerais)



Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 29/04/2025
Alterado em 01/05/2025
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