A Carta E Os Símbolos: A Cura
Janete acorda, espreguiça, abre a boca de sono. Levanta-se, abre a janela, pensa na vida, na sua solidão, no marasmo de sua existência. Não tem mais seus pais, nem irmãos, tem poucos amigos que quase não vê. Com quase quarenta anos nunca teve um relacionamento sério. Era uma pessoa comum, sem muita atributos físicos. Era inteligente e culta. No passado foi apaixonada por um colega de trabalho lindo, alto, forte, charmoso, carismático. Ele nunca olhou pra ela como mulher, apenas como amiga. Ela sonhava com seu beijo e abraço que nunca teve. Quando ele morreu ainda jovem ela pensou que morreria também. Nunca o esqueceu. Depois de tantos anos ainda sonhava com ele.
Janete era uma mulher discreta, quase invisível entre as estantes da biblioteca da universidade de sua cidade. Havia quase um ritual em seu trabalho: catalogar, limpar, restaurar. Tocava e amava os livros como se fossem vivos. Chegava a acreditar que eram. Pensava que em todos os anos que trabalhava ali já tinha lido tudo de interessante. Sua rotina às vezes cansava, mas pelo menos ela trabalhava no que gostava. Sempre amou os livros. Cada exemplar que lia, se colocava dentro da história.
Numa tarde cinzenta e fria de junho, enquanto organizava a seção de obras raras, um volume lhe chamou a atenção. Ao abri-lo encontrou uma folha dobrada, amarelada e quase se desfazendo. Curiosa ela abriu o papel. A biblioteca já estava quase vazia. Sentou-se com calma pra ver do que se tratava. Sua imaginação já estava em alvoroço. Antes de ler já imaginava um grande segredo esquecido ali por algum leitor distraído. Calmamente leu:
“A quem encontrar esta carta, saiba os os símbolos o escolheram e não você a eles.
Esta carta é uma chave. Mas a porta está dentro.
Três sinais virão: o som, o reflexo e o nome.
Siga-os e nunca volte pelo mesmo caminho.”
No instante seguinte o relógio da parede deu cinco badaladas e ainda faltavam cinco minutos para as cinco horas. As badaladas eram diferentes das usuais e um frio percorreu seu corpo. Janete, que não acreditava em eventos misteriosos, sentiu que acabava de entrar em um espaço que nenhum livro poderia explicar. Onde tinha se metido? Pegou a carta e guardou na bolsa e ao chegar em casa colocou entre as páginas de um livro.
Durante dias Janete tentou se convencer que a carta era apenas uma brincadeira de alguém que leu aquele livro. Mas a energia daquele papel parecia a impregnar por inteiro. Nenhuma água e sabão a libertava ou limpava seu corpo da energia pesada. Até que numa madrugada foi acordada por um som alto. Era um sino, tipo de igreja. Ela sabia que não era da Igreja da cidade. Era um som muito limpo que parecia ecoar dentro dela. Uma única badalada. Ela se lembrou da carta e dos símbolos contidos ali.
No dia seguinte ao chegar à biblioteca, o ambiente parecia pesado. Ao olhar, viu entre as estantes uma criança que nunca vira ali. Uma menina de uns sete anos que a observava. Um barulho a fez desviar o olhar. Quando olhou novamente, tinha desaparecido. Perguntou ao porteiro pela menina e ele disse que nenhuma criança entrou no recinto.
Ao voltar viu sobre a mesa um livro com capa luxuosa. Com as mãos trêmulas abriu e então viu que tratava-se de um diário. Na primeira folha as iniciais “A.A.C.”. Neste instante o relógio badalou uma única vez como se fosse dentro dela. Sentiu que era o som de um despertar. Estava apavorada e pensou que errou ao levar a carta para casa. Ficou imaginando se não era tarde e se não estava envolvida até o pescoço naquele mistério.
Chegando em casa leu a carta. Arrepiou pois o próximo sinal era “reflexo”. Evitou se olhar no espelho. No dia seguinte se arrumou e até penteou os cabelos de costas para o espelho. Saiu e nem sabia se estava apresentável. Desviava o olhar de tudo que pudesse refletir sua imagem. Não entendia como da noite pro dia perdeu sua paz. É certo que ela pedia a Deus por uma vida mais interessante, mas não era isto que queria.
Naquela manhã estava organizando uma vitrine e se deparou com o espelho oval antigo. Ela se viu com seus óculos que lha davam um ar de intelectual, cabelos presos, o batom avermelhado. Aos poucos ela viu a imagem se transformar em uma mulher que não conhecia. Apavorada ela fechou os olhos, ao abrir apenas sua imagem estava refletida. Com um frio percorrendo todo o seu corpo ela ouviu: “O que você não vê, te vê. O que você não aceita te conduz. Olhe de novo”
Ao olhar viu novamente a mulher, o diário e a criança que vira. Confusa ficou pensando em como decifrar o mistério que não queria e não procurou, mas que agora estava inserido em sua vida. Quem seria aquela mulher? E a criança onde entrava naquela história?
À noite não conseguiu dormir. Ficava pensando no som do sino e do relógio dentro de si tal qual um alerta tentando despertá-la para algum acontecimento, nas iniciais no diário em branco como se ela devesse escrever a história que ficou pendente e as imagens no espelho. Pegou o diário. Na primeira página havia alguns desenhos, ruas. Mais em baixo uma árvore retorcida e no pé da página uma assinatura em letra bonita: Ana Amélia Cardoso. O nome não lhe parecia estranho. Ao observar mais atentamente os desenhos reconheceu o prédio do Cartório de Registros e a rua onde ele se localizava.
No dia seguinte deu uma desculpa e não foi trabalhar. Foi direto ao cartório. Descobriu que já estava com os serviços digitalizados, mas nem todos os arquivos estavam transcritos. Obteve permissão para olhar os livros antigos. Não sabia por onde começar. Mas tudo levava para um só caminho, no terceiro livro encontrou um registro de nascimento:
“Nome: Ana Amélia Cardoso
Filiação: Manoel Dias Cardoso
Maria Rosa da Silva Cardoso
Avós: Paternos: João José Dias Cardoso
Antonieta Maria Cardoso
Avós Maternos: Antonio Luiz Alvarenga
Janete de Fátima Duarte
Data de nascimento: 10/02/1940”
Janete empalideceu. Seu nome era o mesmo da avó materna de Ana Amélia. O que significava aquilo? Quem seria aquela Janete? Uma ascendente? Procurou os arquivos e encontrou o registro de Janete de Fátima Duarte em 1890.
Queria procurar sua ascendência, mas sua cabeça doía e girava. Precisava entender e digerir tudo aquilo antes de continuar. Será que ela seria uma nova versão daquela Janete? Teve uma noite agitada com sonhos confusos. Tudo se embaralhava ainda mais em sua cabeça. Sentiu-se arrependida de pedir mais emoção em sua vida. O universo não entendeu direito e lhe preparou aquela armadilha.
No dia seguinte ao chegar na biblioteca a menina a esperava. Caminhou ao longo de um corredor e Janete instintivamente acompanhou. Lá no fundo viu uma porta que nunca havia dado importância nem lembrava que existia, aliás, será que existia?
—Pronta pra entrar? — Janete não respondeu, tocou na porta que se abriu.
Ao entrar viu um quarto com mobílias muito antigas. Acima da penteadeira o espelho oval. Janete sentou-se. Ao olhar no espelho viu uma mulher mais ou menos de sua idade. Ela soube que era aquela Janete da certidão.
—Você carrega meu nome. Não é por acaso. Está aqui para cumprir o que não me foi permitido. Mas você não deixa, não se permite viver. Fica chorando por um homem que nunca te quis e esquece de olhar para o lado e ver que o amor está bem ali. Honre suas ascendentes que nunca puderam ser felizes. É certo que você tem seu trabalho, mas isto não basta. Você fica estagnada como se não soubesse ou fosse digna de viver.
—Por que o diário é de Ana Amélia se é você que tem o mesmo nome que eu.
—Ana Amélia foi minha neta e sua avó. Você não chegou a conhecê-la porque ela morreu jovem. Foi assassinada pelo marido que não aceitou quando ela quis se separar para viver um grande amor. Ele não cumpriu um único dia de pena pois alegou legítima defesa da honra. Sua mãe foi uma fraca que vivia deprimida e infeliz, nunca foi capaz de lutar por sua felicidade. Seguiu o perfil das antepassadas e se casou com um homem que não valia nada. Um bêbado inútil que morreu e a matou em um acidente de carro. Você nasceu exatamente cem anos depois de mim e não foi por acaso que recebeu meu nome. Eu morri de desgosto por ser obrigada a um casamento sem amor. Sua bisavó Antonieta viveu infeliz e suportou tudo que a vida lhe ofereceu de ruim, inclusive um marido que a espancava. Todas nós esperamos que você honre seu nome. Tome a vida nas mãos e seja feliz. Busque onde for o seu caminho. Só não fique nesta vida sem sentido. Ensine à sua filha que uma mulher tem direito de ser o que quiser. Tem direito de ser feliz, de desfrutar dos prazeres da vida, de ter um homem que a ame e respeite. Ou de ficar sozinha, se for sua escolha e lhe fizer feliz.
—Que loucura é esta. Eu não tenho filha nenhuma. E por que você veio me encontrar aqui na biblioteca e não na minha casa.
—Aqui neste lugar eu vivi, este era o meu quarto, aqui era a minha casa. Diante deste espelho você está se curando e curando todas as suas antepassadas. Sua filha está livre deste carma. Quem você pensa que é esta menina que te guiou até aqui? Ela espera a oportunidade de ter sua vida e resgatar a vida de todas as outras. Ela se chamará Ana Amélia Cardoso e escreverá o diário que está em branco. A história dela honrará todas as mulheres da família.
De repente Janete só via a sua imagem no espelho. Estava novamente na biblioteca e a menina não estava mais lá. Em suas mãos a carta. Ela abriu e leu: “Você não veio para entender. Veio para ser, para viver plenamente, intensamente. Sua filha levará pra frente a nossa história, viverá uma vida que valha por todas nós. Honre, veja, seja.”
Janete encarou o espelho. Pela primeira vez viu uma mulher que merecia viver, amar e ser plenamente feliz. Sua nova vida começava ali.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 15/05/2025
Alterado em 18/05/2025