Nádia Gonçalves
A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.
Textos
O Mistério Do Sótão
O casarão estava ali há tantos anos que as pessoas passavam e quase nem notavam. Era um belo casarão do início do Século XX. Terreno imenso, todo murado. Do portão dava pra ver a fachada. Elegante, austera e conservadora. Estava fechado há muito tempo. Desgastado pelo tempo e abandono. Ninguém tinha notícias dos proprietários. Ninguém ousava invadir. Muitos diziam que era assombrado. Outros achavam isso bobagem.

No final do Século XX o imóvel foi tombado Houve uma força-tarefa para restaurar o casarão, refazer jardins e quintal. Seria transformado em Biblioteca, Museu e numa área de lazer ao ar livre. Chegaram uma arquiteta e dois engenheiros para avaliar e ver o que precisava ser feito. Os móveis estavam todos lá como se as pessoas tivessem saído e deixado tudo para trás. Algumas peças mais sensíveis estavam danificadas, mas as peças de madeira estavam íntegras, cristais, porcelanas, louças, tudo em seus lugares e cobertos de poeira. Não encontraram nenhum objeto de valor ou documentos.

A casa ainda estava habitável e mandando vir alguns móveis passaram a se hospedar lá. Ao ver a movimentação um senhor perguntou o que estavam fazendo ali. Contaram sobre a restauração e ele disse que não deviam mexer com o que está quieto pois poderiam ter problemas. Questionado ele respondeu que coisas estranhas aconteciam naquele casarão e que talvez eles não iriam gostar do que os esperava. Eles não deram ouvidos.

No dia seguinte chegou uma antiquária, especialista em restauração de móveis. Mandaram abrir o sótão e ficaram impressionados com o tamanho e a quantidade de objetos guardados ali. Parecia que alguém esteve habitando o local por algum tempo. Uma cama, um armário, penteadeira, uma mesinha. Encostada na parede estava uma tela. Uma linda jovem retratada. Cabelos longos e louros, olhos verdes que pareciam ter vida, pele alva. Uma preciosidade. Ao lado um baú trancado e muitos objetos que por certo faziam parte da história do casarão e seus habitantes. O ambiente estava insalubre. Mofo e cheiro de poeira em ambiente fechado há muito tempo. A pequena janela clareava o ambiente. Mandaram limpar para que pudessem explorar melhor aquele espaço.  Naquela noite acordaram com barulho de móveis sendo arrastados e passos que pareciam vir da escada. Saíram dos quartos ao mesmo tempo. Entreolharam-se apavorados. Desceram as escadas e depararam com o quadro da jovem na parede da sala.

—Quem fez esta brincadeira? — perguntou Andréa, a arquiteta.

—Brincadeira de mau gosto. — respondeu Fábio. Todos negaram

Tudo estava em ordem. Com muito medo foram dormir todos em um quarto só. Conversavam e tentavam encontrar uma explicação para o ocorrido. Levantaram cedo com ar de cansaço. Quando chegaram em baixo o quadro não estava lá. Subiram correndo as escadas e foram ao sótão. Lá estava o quadro no mesmo lugar que o encontraram.

—O que pode ter acontecido? — perguntou Luciana, a antiquária — Não estou gostando disso. Tenho medo de coisas que não entendo, de coisas sobrenaturais.

—Esse assunto não pode sair daqui. Ninguém pode saber. — disse Guilherme.

Cada um foi cumprir suas atividades do dia e nã pensaram mais no que houve. Mas à noite todos estavam apreensivos. Nas próximas noites nada aconteceu e relaxaram. Dias depois acordaram com portas batendo, vozes e passos. Correram para o corredor. Não dormiram mais. No dia seguinte resolveram que iam abrir o baú que estava no sótão e procurar por alguma informação sobre a casa e seus habitantes. Ao abrirem encontraram fotos, cartas, cadernos, desenhos e outros objetos que aparentemente só tinham valor pessoal. As fotos eram da pessoa do quadro e certamente dela com os pais. As cartas continham conversas corriqueiras. Em alguns cadernos estavam poesias e versos soltos. Em um caderno no fundo do baú, uma espécie de diário. Na primeira página um nome: Bárbara Antunes de Alcântara. Na página seguinte a data e o texto:

15 de abril de 1948 “Estou completamente sozinha. Presa neste sótão só tenho este caderno, um pouco da luz do sol que entra pela janela, a flores que posso ver no jardim e minha imensa tristeza. Arrependimento não tenho. Faria tudo novamente. Ninguém deve se arrepender do que faz por amor ou pela certeza do que quer. Arcar com as consequências faz parte. Não vou baixar minha cabeça. Eles não vão mudar o que sou.
Nasci no dia 18 de fevereiro de 1931. Uma menina. Eu escolhi ser menina ou talvez foi uma fatalidade ou foi o destino. Minha mãe demorou mais de dez anos para engravidar e meu pai, um próspero fazendeiro, queria um menino, o herdeiro dos seus negócios. Mas eu nasci e ele se decepcionou. Desde então me criou pra que eu fizesse um bom casamento e ele tivesse o genro ideal. Tive uma boa educação, me formei professora. Tinha lindos vestidos e jóias. Tive vida de princesa. Minha mãe nunca mais engravidou.
Nunca fui a menina obediente, recatada e cordata que ele queria. Voluntariosa, nunca aceitei calada o que ele queria impor. Muitas vezes fui castigada, mas não mudava meu comportamento. Aos dezesseis anos, já prometida em casamento para o filho de um fazendeiro amigo de meu pai, conheci Venâncio, filho de um pequeno comerciante que nunca seria aceito por meu pai. Nós nos apaixonamos e eu, rebelde e altiva, não aceitei as imposições. Sempre driblava a vigilância pra me encontrar com ele. Agora descobri que estou grávida. Meus pais logo desconfiaram e o mundo veio abaixo. Católicos fervorosos não pensaram em me obrigar a um aborto, mas me prenderam aqui.”

Ela continuou seu diário contando tudo que passou durante a gravidez. Somente Araci, uma empregada da casa, a ajudava com refeições, banho e limpeza do sótão, ninguém mais sabia que ela estava ali. Finalmente o bebê nasceu, também pelas mãos de Araci que era parteira. Foi tirado dela e levado para longe para, para um abrigo de orfãos.

08/12/1948 “Hoje meu filho nasceu e foi arrancado de mim. Nunca vou esquecer sua imagem tão linda. Meu coração está em pedaços. Nunca mais vi Venâncio que nem sabe que teve um filho. Não sei se meu pai mandou fazer algum mal a ele e isto me consome. Agora perdi o filho que cresceu em minha barriga e que tanto amo. Não entendo a dureza do coração de meu pai. Ter coragem de levar o  neto para um abrigo de órfãos, o menino que ele tanto quis ter. Não posso acreditar que uma pessoa assim tenha sentimentos, alma e coração. A tristeza toma conta de minha alma. E pensar que só queria ser feliz, estar com Venâncio e nosso filho. Mas um homem que acha que manda em tudo mudou o destino.

20/01/1949 Depois do resguardo meu pai me deixou fazer as refeições com eles e passear um pouco pelo jardim com Araci. Fora isso, fico presa aqui. Cada dia mais a tristeza toma conta de mim. Choro e oro a Deus pra que meu filho esteja bem, com pessoas que o amem e o protejam. Eu o chamo de Felipe.

Algumas páginas em branco, algumas arrancadas. Ela falava de tristeza e de saudade de Venâncio e do filho. Falava da maldade do pai e do quanto o odiava e do carinho de Araci que queira ajudá-la, mas tinha medo da fúria do patrão. Chegada a última página.

08/12/1949 “Hoje é o aniversário de um ano de meu filho. Onde ele estará? Não consigo suportar tanta dor, sofrimento e tristeza. É como se nem tivesse mais vida. Cada dia odeio mais meu pai e não consigo nem olhar pra ele. Faço as refeições de cabeça baixa e em silêncio. Vejo a tristeza no olhar de minha mãe que no entanto se mantém submissa a este monstro. Talvez amanhã eu não veja o sol nascer. Morrer é melhor que viver com esta dor, saudade e tristeza sem fim.”

Nada mais foi escrito. De posse do nome completo de Bárbara e do nome da empregada que a ajudava partiram para tentar saber o que de fato aconteceu naquela casa. Conseguiram a certidão de óbito e viram que Bárbara havia morrido no dia 08/12/1949. A causa da morte constava como indeterminada. Não encontraram óbito dos pais, só a certidão de casamento.

Tentaram encontrar Araci e não foi difícil localizar seus parentes pois ela era uma conhecida parteira. Ela já havia falecido, mas seu filho conversou com eles e disse que depois da morte de Bárbara, por suicídio, seus pais sentiam um remorso tão grande que ouviam vozes. Colocavam o quadro na sala e ele sempre aparecia de volta no sótão. Ouviam acusações e lamentos por terem separado a mãe do filho. Eles estavam enlouquecendo de culpa e tristeza. Um dia Araci chegou para trabalhar e encontrou a casa fechada. Um empregado da fazenda finalmente a encontrou e disse que os patrões estavam morando lá. Tempos depois venderam a fazenda, seguiram rumo desconhecido e nunca mais voltaram.

Depois da morte de Bárbara, Araci sentiu culpa. Procurou Venâncio e contou o que aconteceu. Disse que sabia onde estava seu filho, tinha acompanhado o patrão. Foram até lá e conseguiram pegar o menino. Venâncio foi com ele para a capital e ficou na casa de uma irmã. Acabou se estabelecendo por lá. Nunca quis nada dos avós para seu filho.

O casarão foi restaurado e transformado em biblioteca e museu. O quadro voltou pro seu lugar. Os jardins e quintal foram transformados em parque. Os vigilantes sempre contavam que escutavam barulhos e passos pela casa à noite. Muitos frequentadores do parque juravam que viam uma moça loura de olhos verdes com o olhar distante como se procurasse algo. Mas muitos nunca acreditaram nisso.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 16/06/2025
Alterado em 16/06/2025
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