Nádia Gonçalves
A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.
Textos
A Guardiã Do Véu
Eduarda parecia viver entre dois mundos. Não era daqui e nem inteiramente de lá. Na pequena vila situada num vale todos a conheciam como Guardiã do Véu. Sua casa, muito simples, construída em pedra e madeira estava situada num lugar isolado, a meio caminho do topo da montanha. Diziam que ela conversava com o vento, as árvores e outros elementos da natureza. Vivia só e não tinha medo. Dizia que tinha a proteção da natureza e de seus guias espirituais. Caminhava com os pés na terra e os olhos nas estrelas. Seus olhos tinham a cor da esmeralda e refletiam o que cada um trazia por dentro.

As mulheres a procuravam quando a insatisfação deixava o peito apertado e a vida vazia. Os homens vinham quando tudo parecia sem sentido e a dor da alma superava a dor do corpo. Eduarda não prometia cura, mas ao escutar curava. Era como se eles falassem para si mesmos e então a lição viesse em silêncio. Carregava em si uma sensibilidade quase sagrada e quando falava era como se fosse um bálsamo. Sentia os ecos do que foi e os sussurros do que ainda viria. Ao olhar nos olhos do outro era como se transmitisse o que precisavam. Quando o tempo se voltava contra ela e o destino lhe lançava pedras, com sabedoria silenciava-se até a alma e buscava em si e em Deus a libertação.

Numa noite de lua negra Heitor chegou até ela. Era jovem, parecia cansado e trazia no semblante toda a dor de quem procura algo e nem sabe o que é, lhe causando inquietação e tormento. Vivia perdido entre escolhas, olhos cheios de pressa e um coração em ruínas. Queria respostas, atalhos e fugir da própria dor. Calados seus olhos se encontraram em trocas de energias e sentimentos. Eduarda o olhava como se escutasse seus pensamentos. Fez-lhe um chá de ervas colhidas em seu espaço. Ele disse:

—Eu sinto demais, penso demais, murmuro demais e não sei o que fazer com isso.

—Sentir é atravessar o mundo com o peito aberto, pensar é utilizar o dom que lhe foi dado. Mas sem sabedoria, é como andar em tempestade sem abrigo.  Murmurar é perder tempo com lamentações que demonstram falta de fé. Fique. Aprenda a sentir o que importa, a pensar o que te leva ao alto. As murmurações perderão o sentido. Aprenda a escutar o que não quer e nem pode se calar em você. Aprenda a ouvir o que diz o coração e saberá o que realmente tem valor. Não dê valor ao que não tem valor.

E ele ficou. Todos os dias caminhavam juntos, colhiam ervas, conversavam, trocavam pensamentos e conhecimentos através do olhar e Heitor se tornava cheio se sensibilidade e sabedoria como se o destino e o universo o tivessem levado até ali. Aprendeu o tempo de escuta, o silêncio que cura e o gesto que nada exige, a usar a sensibilidade sob a supervisão da sabedoria. Sentiu que tinha uma missão a cumprir. Já estava ali há sete luas e sentiu que a hora de partir se aproximava.

Na noite anterior à partida de Heitor, Eduarda o levou até à edícula que ficava no fundo de sua casa e disse:

—Há uma caixa sob o altar. Lá está o que você precisa para seguir seu caminho e cumprir sua missão. Vá só. A princípio, não vai entender, mas à medida que tudo for se cumprindo você saberá porque recebeu este presente.  

Na caixa encontrou um livro com algumas folhas preenchidas e outras em branco. Sabia que no tempo certo tudo seria esclarecido. Mas tinha algumas perguntas a fazer.

—Porque te chamam de Guardiã do Véu? O que é o Véu?

—Uma linha tênue entre  matéria e sopro de vida. A matéria fenece, espírito e alma são imortais. Esta linha une as duas partes que têm que se harmonizar, senão não há paz.

—E por que me diz que tenho que ouvir o coração se o coração é matéria?

—O Divino habita o coração, mas muitos não percebem. Matéria, Divino e o sopro de vida habitam o mesmo espaço, mas não se confundem.

—E por que o homem não consegue harmonia, felicidade e paz que tanto busca?

—Quatro pilares, dentre outros, sustentam a vida:  simplicidade, cooperação, sensibilidade e sabedoria. Se formos olhar bem, células, tecidos e órgãos apesar de parecerem complexos tem na simplicidade o seu funcionamento, a cooperação está presente entre todos os sistemas do corpo, a sensibilidade faz com que todo o organismo funcione em harmonia e a sabedoria faz com que os órgãos saibam fazer o bem um ao outro e se defender dos ataques externos com minúcia e precisão. Alma e espírito seguem a mesma linha, os mesmos pilares. O ser humano usa a mente pensante, seu ego e psiquê para estragar tudo. Com sua ansiedade, complexos, traumas, maus sentimentos e energias negativas, desestrutura todo o corpo, adoece, faz mal aos seus semelhantes, odeia, inveja, cria as guerras e as disputas por pura arrogância, ganância e prepotência. Alma e espírito ficam perdidos e insatisfeitos assim como a própria mente que cria tudo isto. No dia em que o ser humano aprender que a base da vida são estes quatro pilares, vai viver bem melhor e o universo e a natureza entrarão em sintonia com a humanidade.

Heitor partiu em busca de sua missão com a certeza que já estava inteiramente pronto. Levava o livro do véu, ervas medicinais e incenso, conselhos e a certeza que há forças mais sutis que a razão e que entre o sentir e o saber há um véu sagrado que poucos sabem atravessar.

Na noite em que ele partiu, Eduarda acendeu uma lamparina com óleo de lavanda. Sentou-se na clareira e fez um ritual para que seu discípulo tivesse boas energias e cumprisse fielmente sua missão. Entre flores e plantas sagradas, conversava com quem não via. Não eram orações ou feitiços. Era escuta, comunhão com o que vive por trás das aparências. Fechou os olhos e veio à memória o dia em que recebera o Livro do Véu há muitos anos. Ela aprendera a carregar o livro não com as mãos, mas com a alma. Cada dia uma página era escrita e outra ficava para trás e se apagava depois de se cumprir

Eduarda sabia que Heitor seguiria seu destino e cumpriria sua missão e que um dia receberia um discípulo a quem passaria seus conhecimentos e um novo Livro do Véu. Sabia que tudo se cumpre ao seu tempo, que nada sai da ordem e do lugar. Sabia que um dia sua missão terminaria e ela então descansaria sob o Véu do Universo.


Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 30/06/2025
Alterado em 04/07/2025
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