Nádia Gonçalves
A cada dia cresço, esclareço e me transformo em prismas de puro brilho essenciais à minha alma.
Textos
As Flores De Isadora
Corria o ano de 1935. Na casa nobre dos Maciel, construção de colunas altivas, fachada conservadora, morava o abastado industrial Sérgio Anastácio Maciel, homem de olhar severo e coração endurecido. Sua esposa, Aurélia, era professora, mulher de presença  refinada e gestos contidos como se sempre carregasse uma música grave no peito. Tinham cinco filhos. Isadora, a única menina e terceira a nascer, tinha na época sete anos.

Joana era criada. Era mais que isso, era força antiga disfarçada de silêncio. Chegava ao amanhecer e ia embora depois do jantar. Tinha um filho, Alberto, da idade de Isadora. Seu marido a deixou quando o menino era pequeno. Ela teve que se virar pra lhe dar sustento e educação como tantas outras mulheres que o mundo insiste em tentar dobrar.

Isadora nasceu pequena, prematura, como se tivesse pressa e pressentisse que o tempo era curto. A mãe teve uma complicação no parto e não pôde amamentar. A menina precisava de leite materno. Pediram Joana para dar seu leite à criança. Ela não se negou. Dividiu seu leite farto entre o filho e a filha do patrão. A menina logo se fortaleceu e Joana tomou-se de amores por ela como se fosse sua filha. Era uma linda menina de cabelos dourados e profundos olhos cor de mel que pareciam carregar um segredo ancestral. Contrastando com seu filho que tinha a pele negra como a sua.

Joana sempre enfrentava tempos difíceis para criar seu amado filho. Muitas vezes o levava para o trabalho. Os patrões faziam vista grossa. Na verdade quase não tinham tempo de ver o que se passava em sua casa. Ele, ficava o dia todo em sua indústria e só pensava em fazer crescer o negócio e multiplicar o dinheiro. Ela, ficava quase o dia todo na escola. Joana tomava conta de tudo.

À noite Joana se vestia de branco e ia cumprir seus ritos como Mãe de Santo no Terreiro de Candomblé. Levava seu filho que desde cedo começou a aprender e tomar gosto pela religião. Fazia atendimentos e ajudava muitas pessoas. Em dias certos fazia oferendas em lugares específicos pela cidade. Sempre fazia o bem, nunca cogitou fazer nenhum mal pela sua religião. Acreditava que toda religião é amor.

Isadora e Alberto cresceram juntos ligados por uma ternura que transcendia a diferença de cor e classe social. No jardim ele colhia flores para ela, que sorria feliz. Estavam sempre perto de Joana que os criava com zelo de mãe amorosa. A menina amava Joana como mãe e Alberto como um irmão.

Naquele ano, certo dia Sérgio chegou e encontrou Alberto e Isadora no jardim. Eles conversavam e o menino fazia um ritual que aprendeu no terreiro, mostrando à menina como era. Ao ver aquilo o pai ficou ensandecido e entrou à procura de Joana.

—Joana, o que aquele negrinho está fazendo aqui? Você sabe o que faz no jardim com minha filha? Está ensinando a ela estas macumbas que aprende com você. Minha filha é uma menina cristã, é católica, é da mais alta sociedade. Acha que ela pode conviver com seu filho suburbano e macumbeiro? Ele está proibido de pisar aqui na casa. Não quero que minha filha se encontre com ele nunca mais. Você se vira com sua cria.

—Meu filho e eu não somos macumbeiros. Eu pratico minha religião que não faz mal a ninguém. Eu sempre trouxe meu filho e o senhor nunca disse nada. Sempre aceitou. Eu não tenho com quem deixar o menino, ele não faz nenhuma arte. Fica sempre quietinho enquanto eu trabalho a morrer pra vocês sem nem ser recompensada de forma digna.

—Você trabalha pra mim e eu te pago. A partir de agora eu não quero este menino aqui e nem você perto dela. Vou contratar uma preceptora para educá-la. Você e seu filho são uma péssima influência para uma menina de família como Isadora.

—Quando precisou que eu desse meu leite, eu servia pra estar perto dela não é? Quando precisou que eu cuidasse dela, que eu criasse por vocês, eu servia também. Eu sirvo pra estar aqui dentro de casa e lavar suas latrinas, limpar o chão que sujam, pra tolerar todas as suas imundícies, fazer a comida que comem, mas sou uma péssima influência para sua filha.

—Olhe bem pra você. Não passa de uma negra suja e macumbeira. Mãe solteira. Minha filha é uma princesa linda, branca e da mais alta sociedade. Não pode ficar se contaminando com você e seu filho.

—A cor preta não pega, não contamina e nem suja ninguém. O que faz mal é a escuridão que o senhor tem no seu coração. Seu racismo e preconceito. Sua intolerância. Se sou suja e má influência, não sirvo pra limpar suas sujeiras e nem pra servir de escrava pra vocês. Vou pegar meu filho e vou embora agora. Mas eu volto pra receber o que tenho direito. — transtornado ele diz pra ela ir e voltar em uma semana pra receber.

Joana sai com o filho. Isadora corre para abraçá-los, mas o pai a chama de volta. Conseguem uma outra empregada e vão seguindo a vida. Joana faz pequenos serviços para sobreviver com o filho.  Ela vai receber o que tem direito. Ao chegar, Isadora corre e se abraça a ela e a Alberto. Eles estão comendo um doce e ela pede um pedaço. Joana parte um pequeno pedaço e dá pra ela. Quando Sérgio entra ela está terminando de comer.

—O que deu pra minha filha comer? Não disse que não quero que chegue perto dela? Saia daqui, Isadora. — a menina obedece.

—Só dei um pedaço do doce que estava comendo. Ela pediu. O que pensa que vou fazer com sua filha? — ele não respondeu, deu o dinheiro a ela e mandou que saísse.

—Sei que tenho direito a muito mais que isto. Mas não vou brigar. Mais tem Deus pra dar que o diabo pra tirar. O senhor é um homem ruim, coração de pedra, sujo. O senhor vai ter muito tempo pra se arrepender de tudo que faz, de todas as suas maldades, traições e de seu coração tão feio e tenebroso. — Ela saiu sem esperar resposta.

Durante a madrugada Isadora passou mal. Febre, mal estar, vômitos e cólicas. Chamaram o médico. Ele examinou e disse que devia ser alguma infecção e medicou. Ela melhorava um pouco e piorava novamente. Sérgio começou a desconfiar que Joana a tinha envenenado.  Pessoas que souberam do atrito diziam que na noite em que a menina adoeceu foram feitos dois despachos do candomblé, um próximo à casa dele e um no cemitério e isto não era bom sinal. Ele foi até à casa de Joana.

—Joana, vim até aqui pra te implorar que diga o que fez com minha filha. Se for veneno, diga. Vou tentar reverter o quadro. Se foi macumba, por favor, desfaça. Ela não merece, é só uma menina inocente. Dou tudo que você me pedir, mas fala o que você fez.

—Do que o senhor está falando? Não estou entendendo nada. O que há com Isadora?

—Não se faça de boba. Naquele dia que você foi lá deu alguma coisa pra ela comer e também fez dois despachos destas coisas ruins que você mexe. Na madrugada ela começou a passar mal. Já tem cinco dias e ela não melhora. O que você fez pra minha princesa? Peço pelo amor de Deus que me ajude a salvá-la contando tudo.

—O senhor está louco. Não fiz nada. Jamais teria coragem de fazer qualquer mal a ela. Gosto dela como se fosse minha filha. Eu dei a ela do mesmo doce que eu e meu filho estávamos comendo. E estamos bem. Não sou só eu que faz oferendas aqui. Eu não sou o monstro que pensa. Eu posso tentar ajudar com orações e chás. O senhor permite?

—Claro que não. Já fez bastante mal a ela. Pensa que vou deixar que se aproxime?

—Eu tenho a consciência tranquila e mesmo sem poder me aproximar vou fazer preces por ela. Vai ficar boa. Se tivesse que fazer alguma coisa, jamais faria com ela. Faria com o senhor que tem alma e coração imundos e ruins, cheios de maldade,  preconceitos, intolerância e orgulho. A menina é um anjinho que eu amo como se fosse filha.

—Se minha filha morrer eu te ponho na prisão.

—Sei que é capaz disto mesmo sabendo que não tenho culpa. — ele deu as costas e saiu

Dois dias depois Isadora faleceu e os médicos não chegaram a nenhuma conclusão sobre qual doença a vitimou. Afirmavam que ela não tinha sinais de envenenamento. Que devia ter contraído uma infecção muito forte. Ele desistiu de tentar punir Joana, não tinha como provar nada e não queria escândalo em torno da morte da filha. Mas nunca deixou de pensar que foi envenenamento ou macumba. Ele e sua esposa nunca se recuperaram totalmente da perda e já não tinham a mesma alegria de viver.

Joana seguiu sua vida, tinha a consciência tranquila e sentiu muito a morte da menina que ajudou a criar e a quem ofereceu seu peito e seu amor. Trabalhou duro, criou seu filho que era também trabalhador e honesto. Seguiu suas crenças fazendo o bem como Mãe de Santo. Seu filho seguiu seus passos e se tornou Pai de Santo, fazendo o bem como a mãe. Nunca esqueceram a fatalidade que aconteceu com a menina que tanto gostavam. Sempre faziam preces por sua alma. Alberto, discretamente, por toda a vida  levava flores ao túmulo de Isadora e passava um tempo conversando com a amiga.

No jardim da casa dos Maciel, onde Isadora e Alberto sentavam para conversar ou brincar passaram a nascer, por toda a vida e  espontaneamente,  as flores preferidas dela.

(Os diálogos contidos no conto espelham o costume e palavreado de muitas pessoas da época em que foi ambientado, não refletindo em nenhuma hipótese o pensamento e convicções da autora)
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 30/07/2025
Alterado em 01/08/2025
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