Azul, Violeta E O Chalé Encantado
O azul profundo do céu de final de inverno, quase início de primavera, tocou seus olhos naquela manhã. Sentiu uma paz agradável penetrar sua retina e todos os seus poros. Há muito não se sentia assim e sabia que era apenas passageiro. Talvez aquele sonho… Ainda não encontrara seu lugar no mundo e em si mesma. Ainda havia uma insatisfação gritando dento de si.
Vivia sozinha desde que se divorciou há muitos anos. Aprendeu a conviver com a solidão, a conversar consigo ou com as plantas. Mentia pra si mesma dizendo que era melhor estar sozinha do que com uma pessoa medíocre ou que não valesse a pena. Era uma mulher forte, corajosa, inteligente, competente e muito bonita, mas isto não impedia de se sentir insatisfeita e infeliz. Sabia que era uma futilidade, mas gostava de chamar a atenção por onde passava, sobretudo quando via homens de boca aberta por ela. Sua presença exalava elegância, austeridade, respeito. Ria quando alguns homens preconceituosos e antiquados achavam estranho aquela bela mulher ser tão inteligente e capaz. Alguns ainda acreditavam, em pleno Século XXI, na máxima de que a inteligência de uma mulher é inversamente proporcional à sua beleza.
Não foi mais capaz de amar depois que seu casamento acabou e nunca entendeu por que tanto amor de lado a lado não foi capaz de sustentar seu lar. Até entendia que os traumas dele e os dela eram incompatíveis e que nenhum dos dois foi capaz de buscar ajuda profissional para salvar um amor tão grande. Ele também permaneceu sozinho. Nunca deixaram de se falar e algumas vezes ensaiaram uma volta. Mas a lembrança de todos os momentos felizes não era o suficiente para fazer esquecer os momentos ruins, os péssimos e os tenebrosos. Quando ele morreu tão prematuramente ela sofreu como não imaginou que fosse capaz. Sim, ele foi o amor de sua vida..
Foi uma criança medrosa, arredia, tímida e ensimesmada. Não reclamava, não esperneava quando era humilhada ou injustiçada. Nunca falou de seus sentimentos, temores ou vontades pra ninguém. Fez de todos os seus traumas, dificuldades e momentos difíceis a ponte para crescer como mulher e profissional. Aprendeu a pensar por si mesma, a discernir e formar seus próprios conceitos, opiniões e definir o rumo a seguir. Muitas vezes sentia que isso lhe custava muito sofrimento, lhe sugava muitas energias. Mas quando via tantas “maria vai com as outras” fúteis e sem brilho, sentia que aquele era o seu caminho. Não saberia ser de outra maneira. Tornou-se pura coragem e determinação.
Não se importava com a opinião dos outros. Pela vida afora, muitas vezes estas opiniões a feriram profundamente e então aprendeu que não vale a pena levá-las em conta. Por diversas vezes foi tomada como uma mulher esquisita ou arrogante e orgulhosa. Fazia parte da caminhada. Gostava de ler, aprender e tirar conclusões sobre tudo e então ficava com o que lhe servia. Extremamente racional, não perdia tempo com o que não era concreto. O que lhe interessava era ser dona de si, dos seus pensamentos, conhecimentos e autoconhecimento. Não abria mão de suas convicções, a menos que lhe provassem cabalmente que estava errada.
Não demonstrava suas dores e sofrimentos pra ninguém. Podia estar morrendo por dentro que ninguém percebia. Quando precisava, chorava no vazio e frio de sua cama. E uma dor a invadia naquele momento. Não era a dor de se calar quando queria gritar, espernear, rebelar. Nem a dor de não poder chorar, quando as lágrimas estavam suspensas. Tampouco era a dor de ter que engolir sapos e se manter forte quando queria desabar. Também não era aquela que a sufocava por muitas insatisfações. Aquelas dores eram pena de si mesma. Esta dor trazia um ímpeto de libertação, de rebeldia e mudança. A dor de quem já não suporta travar as emoções, continuar quando quer jogar tudo pro alto, simular estar tudo bem.
Algo a estava incomodando muito. Depois do um sonho com um chalé numa serra perto de sua cidade ficou ainda mais incomodada. Tirou uma licença e sem pensar em riscos ou dificuldades foi em busca do Chalé Encantado. Tinha visto que ficava no alto da serra, onde o nevoeiro beijava a terra ao amanhecer. Estava localizado entre pinheiros e musgos. Sabia também que ali se abrigavam os que precisavam de luz, claridade e de olhar pra dentro de si e enxergar o que realmente importa, de olhar a essência e renascer em si. Ninguém sabia quem o construíra. Surgira ali como surgem as coisas mágicas, quando é necessário e o coração está pronto.
Ela chegou e entrou. Não sentia medo ou dúvida. O Chalé tinha telhas cor de ameixa, janelas amplas que se abriam para o horizonte e confundia com o céu. Suas paredes eram cobertas por lindas trepadeiras de folhas entre verde e prata, tudo cheirava a delicioso incenso. Flores de violetas estavam suspensas pelo teto. Tinha um brilho mágico. À noite, luzes azuladas dançavam pelo teto e paredes. Durante o dia uma névoa violeta repousava abaixo do teto como um véu de silêncio e proteção. Era como se o tempo parasse pra ouvir as almas falarem. Não se contava o tempo, apenas se aquietava a alma.
Já era noite quando entrou no Chalé. Na mesa havia chá, biscoitos, bolos e pães. Como se já fosse esperada. Estava faminta. Comeu, se banhou em uma água de gotas azuis e violeta, deitou-se e dormiu como se não houvesse tempo e espaço. Acordou serena, descansada e relaxada. Espreguiçou e pulou da cama. Ao chegar na sala uma mulher a esperava com um farto desjejum. Trazia também um vestido azul e um xale violeta.
—Vista o que enfeita e acalma, cubra o que pesa. Veja o que precisa. — e desapareceu
Confusa ela colocou o vestido, o xale e tomou seu café. Saiu pela porta e uma luz azul a envolveu como um sopro de paz. O céu parecia se abrir em uma oração silenciosa, uma brisa soprou em sua face como um eco dizendo que quando o azul se aproxima, tudo se aquieta. Como num transe começou a ver cenas de um passado distante. Conversava com várias pessoas que já passaram e tudo clareava em sua mente e psiquê. A luz azul era o manto da proteção divina, o olhar que se guarda mesmo que se faça noite na alma. Clareza e intuição sussurravam suavemente a verdade vinda da alma e de sua essência.
Logo depois a luz azul se afastou e um névoa violeta a envolveu. Veio trazendo a transmutação como se a alma e essência entrassem em um rito de passagem queimando o que já não serve, para nascer em luz o que é primordial. Vinha anunciando o fim de um ciclo e um recomeço. Como se tocasse o fundo e voltasse com os olhos cheios do novo. Como se trouxesse o mistério só revelado aos que têm coragem de olhar para dentro do ser e da alma. Ainda em transe ela compreendia tudo e se renovava, renascia.
Silenciosamente ela retornou. Olhou ao redor e sentiu-se uma nova criatura. Entrou no chalé. Sentia uma energia que nunca sentiu. Ao olhar para a sala viu, sentado envolto em uma névoa prateada, seu ex-marido. Não sabia se chorava ou sorria por ter a chance de vê-lo mais uma vez. Ele se levantou e estendeu a mão. Ela tocou. Ele disse:
—Aquilo que é verdadeiro jamais se perde. Apenas muda de forma e volta ao coração. Venha comigo. — ela o seguiu.
Sairam e andaram em direção ao horizonte. De repente, de mãos dadas, alçaram voo. Ela se sentia leve e pensava se tinha morrido e ele a estava levando para uma outra dimensão. Pousaram em uma nuvem violeta que constrastava com o céu azul. Estavam como que deitados em algodão muito fofinho. Ele a olhava com amor e admiração.
—Demorou, mas você ouviu e aceitou o chamado. Lembra quando me dizia que eu precisava de ajuda pra mudar e ser um novo homem? Hoje sou um novo homem. Tarde demais. Tudo poderia ter sido diferente. Não queria que se tornasse tarde demais pra você também. Sei que agora já é uma nova mulher. Feito um toque mágico você se transformou. Agarre-se a esta chance. Não perca as oportunidades, olhe ao lado, ame, viva com prazer e alegria. Abra-se para a vida, encontre motivos pra sorrir de tudo e de nada. Como fizemos tantas vezes. O nosso amor será eterno. Mas você pode oferecer seu amor pra outro que mereça. Vá, meu amor, vá e viva.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa se sentiu cair e se viu novamente no chalé. Sorria sozinha, rodopiou e tentava abraçar as luzes azuis e violeta que a envolviam. Esteve ali por muito tempo. Sentiu-se cansada, deitou e dormiu. Não sabia por quanto tempo. Acordou, olhou ao redor. Estava no chalé sem saber quanto tempo se passou. Lembrou de tudo, sentia-se leve, transformada. Levantou, na mesa estava o café da manhã. Fez seu desjejum, pegou o que era seu. Saiu do chalé e a porta se fechou atrás de si.
Quando olhou a paisagem, notou que era diferente. Talvez a visse com outros olhos. No coração uma certeza: Azul é o silêncio da paz reencontrada. Violeta é a chama da alma que escolheu seguir em frente. Sabia que sua vida jamais seria a mesma. Ali do lado estaria lhe esperando um novo amor, uma nova vida, um recomeço…
E o chalé? Bem, o chalé só é encontrado por quem tem coragem de atravessar a si mesmo…
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 04/08/2025
Alterado em 05/08/2025