Maria Da Lua
Nas noites de lua cheia ela caminhava até a cachoeira como quem regressa ao sagrado. Despia-se e sob o prateado da noite deixava que a água descesse sobre sua pele como bênção. Erguia os braços e deixava a luz da lua atravessar seu corpo nu e iluminar sua alma. Quase ao alvorecer, já purificada e cheia de energia, recolhia ervas curativas. Com paciência e devoção transformava-as em poções, garrafadas e chás. Então recolhia-se ao sono. Nesse dia ninguém ousava bater em sua porta.
Maria da Lua nasceu com o Ano Novo e a nova década, em 01 de janeiro de 1941. Sua mãe, mulher de rezas, curas e segredos, entrou em trabalho de parto. Estava sozinha. Seu marido na rua, entregue à bebedeira, celebrava o Ano Novo com amigos. Ela sentia as dores e se ressentia da falta de sensibilidade dele. Ouvia os festejos lá fora e sentia a hora do parto se aproximar. Era uma e quarenta da manhã quando trouxe a filha ao mundo com as próprias mãos. Ao segurá-la entre suor e lágrimas disse:
—Vai se chamar Maria. Será uma grande Maria, abençoada por Deus. Seus orixás, Obá e Iemanjá serão seus guias e te trarão as ordens do Ser Supremo.
O pai nunca foi presença, apenas sombra. Bebia mais que trabalhava e morreu quando ela ainda era uma menina. Sua mãe se virou pra criá-la. Vivia de pequenos serviços e de doações que recebia por suas de benzeções e poções que receitava em seus atendimentos. Maria cresceu entre raízes e folhas aprendendo os segredos da mata. Aprendia com a mãe e ia ficando até mais sábia que ela.
Quando Maria tinha vinte e sete anos, a mãe saiu pra colher ervas antes de clarear o dia e jamais voltou. Ninguém soube o que aconteceu. Alguns diziam que uma cobra a picara, outros que uma fera a devorara. Havia quem dissesse que simplesmente desaparecera no ar misteriosamente. Maria ficou sozinha na casa, um lugar isolado perto da mata.
O povo a chamava Maria da Lua por seus banhos de cachoeira à luz da lua cheia. Bela e solitária, nunca pensou em casamento. Temia encontrar em um homem o reflexo do pai. Viveu do seu dom ajudando quem a procurava e aceitando o que lhe ofereciam por gratidão. Levava uma vida modesta.
Durante anos a pequena cidade viveu em harmonia. O velho padre estava ali há muitos anos e era um homem sábio. Aceitava os rituais de Maria como sempre aceitou e conviveu bem com sua mãe. O médico, antigo ali, igualmente aceitava sua presença.
Poucos anos depois o padre se afastou. Chegou o padre Olavo, jovem e cheio de idéias, preconceitos e intransigências. Logo procurou se inteirar de tudo na Paróquia e na cidade. Não demorou a saber das atividades de Maria da Lua. Ficou sabendo que benzia e dava poções, chás e garrafadas para tratar as pessoas. Foi procurá-la e pediu que parasse com aquelas atividades pois era pecado e abominação. Ela não discutiu com ele, mas também não parou. Ele bradava contra aquela que chamava de feiticeira em seus sermões. Mas viu que não surtia muito efeito e as pessoas continuavam a procurá-la.
Logo depois o médico se aposentou e chegou o Dr. Álvaro. Era jovem, arrogante, prepotente e pensava que sabia tudo. Percebendo que Maria da Lua era mais procurada que ele, inflamou-se de inveja. Aliou-se ao padre para combatê-la. Foram ao prefeito e a Afonso, o homem mais rico e poderoso da cidade. Uniram-se para baní-la. Foram à sua casa. Conversaram, tentando fazê-la parar com as bruxarias. Pediram, ameaçaram. Finalmente o padre declarou:
—Você está proibida de atender as pessoas. Deve se recolher em sua casa e abandonar estas práticas abomináveis. — firme e de cabeça erguida ela respondeu:
—Padre, doutor, prefeito, senhor Afonso, eu não vou atrás de ninguém oferecendo minha ajuda. As pessoas é que me procuram. Não vou negar ajuda a quem sofre. É meu dom, um dom que recebi de Deus.
—Você blasfema quando coloca o nome de Deus em suas bruxarias.
—Não blasfemo, digo a verdade. Nada posso se Deus não me der o dom.
—Se continuar falando assim eu vou te excomungar.
—Pouco me importa que me excomungue. Sei que Deus me abençoa e me concede o dom de curar. Sua excomunhão não tem parte com Deus que é amor e compaixão e o que eu faço é por amor e compaixão. E agora saiam da minha casa.
—Você é muito atrevida. Vamos, este lugar é impuro. — eles saem e ela bater a porta.
Continuavam hostilizando Maria, mas tinham medo de ações mais radicais pois o povo tinha muita confiança e gostava dela. Pouco tempo depois um surto de febre com diarréia, vômitos e fraqueza surgiu na cidade. O médico não sabia exatamente do que se tratava. Medicava, mas as pessoas só pioravam. Começaram a procurar Maria, como se estivessem em romaria. Ela se recolhia, orava e passava suas poções e chás. Aos poucos as pessoas se recuperavam. O médico estava furioso e desesperado. Estava sendo desmoralizado e não suportava a situação. Continuava tentando tratamentos sem resultado.
O dia começava a clarear quando o prefeito e sua esposa, com seu filho no colo chegaram na casa de Maria. Estavam ressabiados. As pessoas que já começavam a chegar cochichavam sobre a presença dele ali. Ela ficou assustada ao vê-los.
—Maria, meu filho está muito mal com a febre, por favor faça alguma coisa por ele.
—O senhor por aqui? Eu não posso atender seu filho. Vai usar isto contra mim. Está de conluio com os outros. Por favor vão embora. — a esposa dele disse:
—Por favor, Maria, não deixe meu filho morrer. O tratamento do médico não está adiantando. Sei que já curou muitos desta maldita febre. Eu te peço como mãe.
Maria mandou que entrassem. Benzeu o menino. Retirou-se para fazer suas orações. Voltou um tempo depois com três frascos e entregou à mãe do menino.
—Tive uma visão. Tem alguma coisa na água de algumas localidades que está causando esta febre. Se o senhor acredita em mim, tem o poder de mandar verificar.
Eles saíram e o menino foi melhorando. Em segredo o prefeito chamou técnicos da capital pra verificar a qualidade da água de todo o município. Enquanto isto a febre atingia cada vez mais pessoas e elas iam procurar Maria. A notícia que o prefeito foi procurá-la se espalhou e todos comentavam. O médico e o padre ficaram furiosos.
Ocorreu o primeiro óbito de um homem que estava sob os cuidados do médico. Afonso começou com a febre e piorou rapidamente. O filho ao ver que de nada adiantava o tratamento do médico o levou até Maria. Ela fez seus rituais e deu os frascos com poções e também um chá. Ele foi se recuperando. A população foi se voltando contra o médico a quem chamava de charlatão e desesperada pedia socorro a Maria.
Por fim foi descoberta a origem da contaminação da água e solucionado o problema. Mas o prefeito chamou pra si todo o mérito de ter resolvido o problema e restabelecido a paz e tranquilidade na cidade. Foi até Maria e em segredo lhe deu uma boa quantia em dinheiro por ter curado o filho e alertado sobre a água.
—Não preciso do seu dinheiro, senhor prefeito. Preciso que me deixe em paz. O senhor não disse uma palavra sobre mim ao anunciar que tinha descoberto a origem da febre.
—Não precisa do meu dinheiro, mas ele pode ajudar a cuidar de mais pessoas. Sei que vive de doações. É a minha doação. Não posso dizer nada sobre você pois seria minha desmoralização política admitir que uma curandeira teve uma visão sobre a origem do problema. Mas tem a garantia que ninguém mais vai lhe incomodar.
Ele virou e saiu no mesmo momento em que Afonso chegava dizendo:
—Quero lhe falar, Maria. Quero agradecer porque salvou minha vida. Eu poderia estar morto se continuasse a ser tratado pelo médico. Vim dizer também que quero fazer alguma coisa por você. Posso lhe dar o que quiser, uma casa melhor, uma vida melhor, com mais conforto.
—Não quero nada do senhor. Quero viver exatamente como vivo. Foi assim que sempre vivi e é assim que deve ser. Não preciso de muito. Nasci pra fazer o que faço, pra ser quem eu sou e viver como vivo. Recebi este dom e cumpro minha missão com amor. Faço o que o Ser Superior me permite ou ordena.
—Pense e me procure se quiser. Deixo pelo menos minha doação.—entregou e saiu.
O médico, humilhado e desacreditado, deixou a cidade. O padre diante da situação se calou, mas nunca aceitou as atividades de Maria. O tempo passou, chegou outro médico mais tolerante e compreensivo, a vida seguiu.
Maria da Lua continuou com seus rituais, orações e preparação de suas poções que tão bem faziam às pessoas. Maria da Lua era mais que mulher. Era lenda. Era a ponte entre a terra e os mistérios do universo.
Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 20/08/2025
Alterado em 22/08/2025